Álbum de Retratos

Invento-vos como sois (Bergson), mas o essencial de vós escapa aos enquadramentos.


(Imagem : Adama)

AMADIS




No início da primavera, uma folha desprende-se ainda verde da árvore. Naquele momento súbito e inesperado, não sabia se rir se chorar. Ficou atordoada, perdida. O vento nesta época não se sente particularmente inclinado para dançar com as folhas, nem estas têm leveza suficiente para a dança. Anda envolvido com as flores, mareado na diversidade de cores e perfumes. Não se destaca particularmente −é apenas uma fragrância. Só quando as folhas ganham desprendimento e uma dourada leveza − algumas pintam-se de um laranja avermelhado de  aparência um tanto fogosa − é que estão preparadas para a dança entregando-se airosamente nos seus braços e ao som de uma luz suave e lânguida iniciam com ele um bailado. Só nesta altura é que o vento se destaca conduzindo-as a seu bel-prazer. Depois de tantos rodopios e giros diversos, as folhas acabam exaustas, feitas húmus que alimentará outra primavera por vir. Mas o vento nunca pára nem se detém. Continua depois a sua ronda pelo inverno fora,cada vez mais afiado e independente, a correr tantas vezes em fúria e assobios loucos. Leva sem freio todas as coisas pela frente até esbarrar mais uma vez na estação do perfume e das flores que com tamanha sedução o apazigua e silencia. E assim, mudo mas de alma inteira, volta a exibir a primavera e, destacando-lhe o perfume que espalha em redor, coloca-se em segundo plano. Precisamente por ter caído nesta época  é que a pequena folha correu o risco de morrer antes de tempo sem verdadeiramente viver o seu potencial.
Um dia, um rapaz, ao passar por ali com uma câmara fotográfica de turista, reparou nela e ainda pensou em devolvê-la à árvore, mas depois de se desprender nenhuma folha retorna, pelo que só conseguiu mesmo a fotografia de um pormenor. Houve, porém, uma menina de cabelo comprido, solto, fino,airosa e esguia, que ao andar por aqueles lados a saltitar, movida por uma imaginação que era só dela, espontaneamente a colocou na palma das  mãos e a levou com cuidado para casa. Deixou-a num copo de água − não fosse por lá perder todas as hipóteses de vida − e foi olhando atenta dia e noite. Com o tremendo potencial que a folha tinha, constatou com surpresa que ganhou raízes e na altura certa lançou-a à terra com a mesma delicadeza e atenção nos gestos. A planta lutou tanto, mas tanto, para sobreviver que chegou mesmo a tornar-se uma árvore sólida e frondosa cheia de folhas e flores. Ainda hoje é uma árvore resistente que dá muito de si − conhece os segredos dos amantes, a conversa das mulheres , de todos os que se detêm na sua sombra; sabe de cor os movimentos dos astros e conhece os segredos dos mundos ocultos que se escondem nas suas raízes. Na primavera é bonita, mas no outono é um espetáculo maravilhoso, um tanto nostálgico, ver as folhas iniciarem a partir dela a sua dança à luz do entardecer. Apesar de generosa e de ter adquirido a sabedoria, a serenidade e a capacidade de sobreviver firme aos temporais e à dureza do inverno, a observar os fenómenos sem se destabilizar, há quem diga que nos dias de lua cheia esta árvore secretamente chora por uma qualquer nostalgia de nunca ter podido ser folha bailarina, vulnerável e dançar com o vento dando-se a uma entrega e morte fáceis − mesmo sabendo que raiz, ramos, folhas e flores são afinal diferentes traços com que se desenha uma árvore.

(Foi esta a história que vi nos olhos de Amadis, um  negro;num dia sublime – inesperado − em que o sol se misturava com chuva e trovões. Num final de tarde, ainda verão, na serra de Sintra quando a terra − faminta daquela água que caía sem freio dos céus − exibia no verde viçoso uma inigualável glória.


Dias depois, Amadis adoeceu. Com a o nevoeiro espesso que se impôs, perdi o acesso ao seu olhar terno, fundo...

Verónica Louise