Álbum de Retratos

Invento-vos como sois (Bergson), mas o essencial de vós escapa aos enquadramentos.


(Imagem : Adama)

Paulo Verona

1.

Paulo Verona apesar de morto continua vivo – mais que tudo no coração de muitas mulheres que veem naquela estátua alento e inspiração acrescida. «Não há nascimento nem morte» – ouvimo-lo muitas vezes. Para muitos, apenas uma afirmação digna de respeito. Agora as mulheres, com o coração ao rubro – nos olhos, nos gestos –, apreendem o sentido das palavras a partir de uma visão interior, característica de uma sensibilidade fina. Orion – uma rapariga de longos cabelos, perfeita metáfora do vento – desde tenra idade previu uma estátua de honra e de mérito. Não dele, mas dela – só por ser sua filha. Quanto agora passa pela representação do pai, o rosto vacila entre as lágrimas e uma abertura cristalina. E o passado atopela-a: as brincadeiras à beira-mar, as estórias intermináveis, um tanto surreais, onde a loucura e o amor eram os grandes protagonistas num humor que os fazia morrer de riso. O filho – um rapaz com a postura nobre de um cavaleiro dos tempos idos e uma sensibilidade líquida que vence a armadura –, mesmo pequeno, tinha que impor ordem naquilo: «Já chega, pai. Agora já chega.» E adormeciam, tantas vezes com a roupa que traziam, enrolados uns nos outros, exaustos e felizes como atores esvaziados de cena. Era assim que Verona agitava a mundo, o virava do avesso, naquele Carnaval em família com os seus dois filhos e as mulheres que se sucediam. Depois voltava ao alinhamento reto de professor catedrático, mais tarde presidente, onde só dava para ver uma seriedade digna de respeito suportada na solenidade de um rosto que mal se movia. Também por isto parece vivo. Mas Verona não fora só uma pessoa na linha. O homem a quem alguns chamaram Mestre – constantemente convocado para ocupar cargos de chefia, parecendo colecionar títulos, forrar prateleiras de livros e encher páginas de currículo – tinha a sua loucura secreta: havia dias em que deambulava  nas ruas à noite, dava pontapés nos postes e virava bidões do lixo; escrevia frases nas paredes, dormia nas ruas ao lado dos sem-abrigo, repetia bem alto «Quero ver Lisboa a arder!». Depois imaginava um homem e uma mulher num amplexo amoroso reemergirem entre as chamas num amor maior do que o mundo. A verdade é que ninguém lhe conhecia estas facetas e, por mais que gritasse nas ruas da capital – «Quero ver Lisboa a arder!» –, as pessoas não acordavam nem vinham à janela. Mas a morte a Paulo Verona nunca lhe causou medo. Era uma experiência que integrava no quotidiano. Ainda me lembro quando saía fora do corpo e ficava assim mesmo, a deambular por mundos imaginários, parecendo deixar a figura programada em jeito de concordância cordial com conversas aborrecidas («sim», «pois», «compreendo»). A contrastar, ganhava nova vida ao falar para as multidões. Também por isto parece vivo. Quem seria o artista que conseguiu expressar em linhas tão realistas a leveza do seu gesto de mãos, quando citava e recitava os sábios e os poetas, o rosto fechado, o sorriso velado, o olhar para dentro? «Ia jurar que vi o meu pai sorrir!» – confessava às paredes Orion. Corria um burburinho entre mulheres que também diziam ter visões – alucinações puras – que alimentavam o mito. O mais estranho era que os homens nada viam. A não ser o seu filho. Esfregou os olhos, abanou a cabeça e correu a procurar uma explicação científica ao ter a impressão de ver o rosto da estátua do seu progenitor encher-se de ternura. Os homens da capital tinham, para com o homem que deu voz aos animais e atenção aos loucos mais desfavorecidos, respeito e admiração enquanto vivo. Receberam com agrado a estátua, ninguém exigiu grandes burocracias, mas, por estranho que pareça, começaram a desesperar-se com o alvoroço feminino. Houve mesmo um homem que, numa noite, ao ver a mulher tão sensual como jamais a vira, dançar  ao redor da figura ao ponto de mostrar os seios num transe incomum, pegou, desesperado, numa marreta  com a firme convicção de transformar a escultura em pedacinhos. O que valeu foi ter aparecido casualmente o filho de Verona com amigos, evitando a concretização do objetivo. As mulheres tentaram tornar-se mais discretas para dispersar as atenções e acalmar os ânimos. «Vejamo-lo nos nossos maridos» – sugeria Gilda,  recorrendo a ideias expostas num livro que o professor escrevera sobre o uno primordial e o sabor único. Eis a mulher que se tornara uma espécie de porta-voz de um clube  de fãs com tendências eróticas e místicas, citando-o com frequência. Quanto à minha pessoa, o simples facto de andar com uma câmara tem-me levado a observar as reações humanas com alguma atenção, dando-me permissão para entrar e sair à vontade nas portas principais e  passar nas travessas. Como tal, facilmente penetrava no círculo. Mesmo conhecendo desde sempre o fenómeno e ter privado de perto com Paulo Verona, dava por mim surpresa. Aconteceu estar a fotografar a estátua ao raiar do dia, por pedido de Gilda. Precisavam de fotografias apelativas, cuidadas, para o grupo e até eu tive a sensação de ver a estátua prestes a desmanchar-se de riso! Aquele riso, como vi tantas vezes em vida, perante a tragicomédia da existência. E comecei a rir sem freio, como se fôssemos cúmplices e não estivesse ali sozinha. Tendo-me desconcentrado tanto, adiei as fotografias. Ria por dois motivos: porque tomei consciência de toda aquela loucura, alucinação febril, e porque me vi igualmente tonta. Mas, no meu caso, entendia-se. Eu nunca fui muito presa ao concreto e tenho por hábito reinventar o mundo. Depois de tanto rir, passei ao outro extremo: comecei a chorar a sério. Tive saudades daquele amigo...


2. 

Sempre houve uma nota de mistério na vida de Paulo Verona (em parte, isso atribuía-se à expressão. O seu rosto era ausente da atmosfera que emana das personalidades mais mediáticas. O seu olhar ardia para dentro. Exteriormente, economizava expressões. Ainda assim, tocava as multidões e deixava um fio de ternura no interlocutor). As circunstâncias da sua morte não foram exceção. A notícia teve o seu momento solene na voz de Sofia Damas (cabe-me aqui fazer uma referência a esta mulher. Poderíamos dizer que foi a sua última e mais importante amante – no sentido genuíno que o termo pode compreender – para aquele que tinha o "casamento" e o "impossível" como as mais secretas aspirações. Este amor ganhou toda a intensa carga de significado que habitualmente se atribuiu ao primeiro. Sofia não era só uma mulher apelativa do ponto de vista físico. Revelou também uma inteligência fora do comum. Resolveu, de um modo admirável, este binómio aparentemente inconciliável. E triunfou sempre pelo lado do amor apaixonado. Essa energia que eleva o gesto a uma dimensão heróica, sem a qual aquele que foi seu marido não podia criar. No primeiro momento em que os olhos de Paulo tocaram o verde dos de Sofia, deu-se um fenómeno que não tem significado nos dicionários. Não lhe restavam dúvidas: aquela sempre fora, deste um tempo anterior ao tempo, a sua mulher. Quis logo fundir-se com esse absoluto. Casaram. Percorreram as diferentes tradições religiosas. Disseram sempre “sim” em muitas línguas e credos e passaram mais de uma vez por aquele momento tocante de arrepiar a pele a fazer bailar as lágrimas. Após três anos, divorciaram-se para se amarem melhor. Os casamentos foram anunciados a letras gordas e o divórcio comentado com algum pesar. Quando Sofia sentiu uma espécie de arrefecimento do amor heróico, quis divorciar-se. Passou para o plano do impossível e tornou-se inspiração pura, loucura declara, interdito desconcertante. Se não tivesse de respeitar o tempo de um conto, podia relatar a saga desta paixão com algum pormenor. Seja como for, quando anunciou a sua morte, estavam divorciados. Num certo sentido, mais casados do que nunca. A imprensa sempre revela o lado mais superficial) com direito a um longo tempo de antena onde o silêncio devorou as palavras e reforçou os olhares. Também eu fui apanhada de surpresa. Cheguei a ficar indignada com o ar fresco parecia feliz de Sofia Damas ao relatar o sucedido. Vinha com um vestido raiado da cor dos olhos, alças e cair leve. Nada por dentro dele interrompia a respiração natural da pele. Faziam-se notar, ligeiramente, os bicos dos seios. A sua vocação natural para a beleza dispensava qualquer reforço artificial. O cabelo castanho claro, pouco abaixo dos ombros, também tinha um cair natural. Sofia dizia que Paulo Verona partiu em paz na Índia e as suas cinzas foram lançadas no rio Ganges. Apanhou a população desprevenida e apreensiva por não terem nem o corpo para lhe prestar a última homenagem...  Depois, Sofia pediu alegria porque ele estava vivo no coração de cada um, na imortalidade dos livros, na obra a continuar. Passados quarenta e nove dias, pela calada da noite, na esplanada da Graça, em frente à igreja, ergueu-se a estátua. O Tejo em frente e a cidade das sete colinas estendida por baixo do céu.  Desconhece-se o autor daquele realismo e riqueza de pormenores absolutamente genial. 


3.

Passaram três anos. Quase  impercetíveis. As chuvas, os ventos, as modas não apagaram a memória nem refrearam o entusiasmo. A vida reinventava-se. É claro que o fenómeno se tornou mote de artigos e debates, críticas sarcásticas, objeto de investigação sobre comportamentos. Paulo Verona ganhara uma espécie de imortalidade. À volta da estátua encontravam-se poemas, citações, vestígios de roupa feminina, bebidas e perfumes exóticos... E Gilda prosseguia de alma grande. Deixara de ter depressões e exibia um potencial insuspeitado até então. Continuava a citá-lo. O círculo alargava. Algumas mulheres dançavam, cantavam, declamavam poesia, encontravam significado em tudo. Nos intervalos da vida eu observava. Nas horas que desfaziam o sol no horizonte, o passado chegava-me como uma lufada de  pólen. Voltava a rever o amigo naquelas mesas numa relação apaixonada com os livros, a sublinhar passagens a cores de fogo: Nietzsche, Cioran, Pessoa, Pascoes, Sampaio Bruno, Eckart, Chögyam Trungpa, Nagarjuna... Os livros sempre foram os seus amigos de jornada  (a visão panorâmica intercetava a paisagem humana, a brisa fazia flutuar os vestidos e os cabelos das mulheres e trazia o coração à flor da pele numa entrega e abertura de lágrimas). Às vezes sentia-me pouco séria, já tudo me parecia uma música batida. Eram demasiadas manifestações e emoções. Quase sempre adivinhava o gesto que vinha a seguir. Até que comecei a reparar numa jovem mulher diferente. Ninguém lhe dava importância. Era difícil expressar-se, movia-se com lentidão num corpo um tanto amorfo. Tinha uma doença que habitualmente se designa por Síndrome de Down, creio. Cantava com frequência (desafinada. A dicção era pouco límpida). Algumas raparigas olhavam-na de esguelha, outras esforçavam-se por a aceitar com ares compassivos. Não era levada muito a sério por ninguém. Passei a observar Mira com mais atenção e assisti a profundas mudanças de comportamento para com a mesma. Mira passava ali muitas horas. À força de tanto vibrar, imaginava-se, certamente, mais fluída do que a imagem que exteriorizava quando dançava. Talvez fosse benéfico não ter total consciência das suas aptidões para o canto e assim continuar a "espantar" a tristeza. A expressão do seu rosto era sempre de boca aberta; o cabelo, com franja, escorrido, abaixo das orelhas, tinha pouco volume e colava-se à cabeça. Ainda assim, demonstrava inteligência e vontade de se superar. Gilda ganhara para com ela uma simpatia verdadeira. Depois de umas passagens de textos de Paulo Verona sobre um modo de amor que a todos inclui, começaram a aceitar as diferenças. Um dia, a jovem mulher chamou Gilda à parte e, meio rubra, com os olhos a saltar ora para o interlocutor à sua frente, ora para o chão, pediu-lhe para a ajudar a realizar um sonho: beijara a estátua. Gilda abanou a cabeça e, entre sorrisos, disse: «Mas como, menina!? As estátuas e as fotografias não se beijam nem o arco-íris se toca. Iluminam-nos a vida, inspiram-nos, mas beijar, beijar... É mesmo pedra que tu queres beijar!? Além disso podes desequilibrar-te...». A rapariga que vira tantas vezes o seu entusiasmo morrer, nada concorrida como mulher, choramingou. A outra olhou-a nos olhos. Calou o rosto. Elevou o olhar para a estátua («Afinal, és pedra. Não tens existência real. Nunca te poderemos sentir como quem põe a mão no fogo e se queima») e logo o deixou cair no chão. Depois de um longo momento de silêncio, consentiu a loucura. Iria ajudar a amiga a aceder aos lábios da estátua...

4.
Já a noite ia longa quando Gilda estacionou o carro no Miradouro da Graça. A luz prateada de uma grande lua espalhava-se na cidade. O mesmo brilho alagava os olhos de Mira. Gilda tinha o coração em sobressalto, prestes a cair-lhe aos pés ao ver aquela criatura frágil, de passo incerto, subir os degraus do sonho, resoluta, apesar das limitações que todos lhe conhecíamos. Gilda roía a unha do dedo indicador. Esquecia a compostura. Quando a rapariga apoiou a sua mão numa das mãos da estátua e atingiu a plataforma mais estável, finalmente respirou. A sombra do pensamento racional, difícil de evitar, ameaçava o sentido da sua vida nos últimos tempos. Mesmo sabendo do seu contributo para criar situações como esta. Mira olhou de contente para baixo e acenou com a mão. Depois, extasiada, ficou ali num pasmo sem igual. O ensaio do beijo demorava. Aquele encantamento, quase constrangedor, começara a impacientar Gilda («Isto já é demais!»). «Mira, estás bem?» Não respondia. Ficara pasmada. E não era para menos, visto que não estava perante a representação da vida. Tocara o milagre. Esta história pode até parecer ter semelhanças com a da Bela Adormecida. Neste caso, foi no beijo de uma princesa insuspeitada que Paulo Verona descera, ficando provado que estava vivo. Contemplou durante três anos a fio o céu, o desfile do mundo. A fome e o frio não o derrubaram. Atingira um admirável domínio  da mente e do corpo (mas seria o amor que ainda o desconcertou!?). Ele era uma estátua viva. Mais do que uma estátua viva: era um yogui altamente realizado. Iria de imediato para o Guinness  deixando o mundo boquiaberto (enquanto isto, Sofia Damas, na sua despedida de solteira, fazia um brinde à liberdade, essa coisa imensa, e começou a dançar descalça em cima da mesa de um bar de estilo rústico. A alça do vestido deslizava deixando quase escapar um seio. Os movimentos do corpo nasciam na mesma progressão do alaúde  de um homem oriundo do norte de África que ali entrara autorizado a pedir moedas aos clientes que se deixassem impressionar com a sua arte. Os olhares masculinos devoravam Sofia; o estrangeiro afinara através dela o ímpeto e o gerente, também ele fascinado, consentia. Caíram muitas moedas e notas para a mulher e o desconhecido, mas a bailarina deixou-as com o músico, enquanto as amigas aplaudiam encantadas aquele rasgo de inspiração inesperado. Sofia, a única que desde sempre conhecera o segredo de Paulo Verona, fê-lo em jeito de celebração. Entre ambos nunca houve longe nem distância).

5.

Como o leitor já deve ter percebido, desta vez o impacto de tão insólito acontecimento fora sem precedentes. A vida de Verona voltou a fazer correr tinta. Formaram-se grupos de investigação, abundavam colóquios e conferências que abordavam as questões do cérebro, o controlo da mente e do corpo; proliferou o comércio de acessórios e materiais para estátuas e, embora muitos aspirassem a tão prodigioso estado, faltava-lhes a persistência e a disciplina de longas horas de treino, condição imprescindível para chegar ao ponto em que a imobilidade se tornava paz e liberdade. Paulo dava entrevistas, escrevia artigos sobre o tema, abriu uma escola para as pessoas interessadas em comprometer-se de uma forma mais séria. Lisboa atraiu mais turismo. Por todos os lados se erguia uma estátua de maior ou menor duração. Com isto, Gilda, surpreendentemente, entristecia. Aos olhos desta mulher, o professor, apesar de vivo, parecia morto. Ela não o reconhecia. E claro que estava diferente: mais jovem; ria e sorria com facilidade. Perdera a pose grave, vestia-se de um modo mais descontraído, ficava nas fotografias com uma abertura contagiante... Embora ajudasse a formar estátuas vivas, depois de três anos de imobilidade e silêncio só tinha vontade de dançar. Mantinha, para com a sua mulher que virara uma espécie de heroína, um olhar atento. Lia agora menos. Viamo-lo frequentemente com o seu gato metade branco, metade preto Eusébio. Gilda vira o seu empenho de três anos cair e voltara a entrar em depressão, chegando mesmo a dizer a Verona, a soluçar, com o rosto encharcados de lágrimas, que não queria ser estátua. Não sentia esse apelo dentro dela. Paulo, a contrastar, lançou-lhe um grande e terno sorriso: «Amiga!, nem todos temos que ser estátuas vivas. Nada está perdido. Com a experiência que acumulaste, porque não escreves uma obra “O pensar no feminino”?» A rapariga enxugou as lágrimas e iniciou na sua vida um novo ciclo: tornou-se uma escritora bem-sucedida com esse primeiro livro prefaciado e diversas vezes citado por Paulo Verona. Foi a partir daí que retomou o rumo da sua vida.

6.
Com o tempo, deixei de ir com tanta frequência ao Miradouro da Graça. Aquela zona ficou mais silenciada. Continuava a fazer grandes caminhadas pela capital. Percorrer a cidade é como ler um poema. Ainda mais quando a pressa dos dias abranda e as sombras se distendem na luz dourada. As estátuas tornavam-se uma presença um tanto familiar. Animavam a cidade. Por vezes, olhava-as fixamente nos olhos tentando perceber o grau de realismo e seriedade das mesmas. Nalgumas ainda se sentia agitação interna. Algumas representavam figuras histórias, outras absolutamente peculiares e contemporâneas; havia-as muito simples, despojadas de ornamentos. Era frequente ver adolescentes em jeito de gozo com as mesmas. Faziam-lhe cócegas, depois punham-se com caretas ao lado delas e saía uma selfie. Nos fins de semana, viam-se muitos no Largo do Martim Moniz a fazer pinos, apoiados na ponta de um pé ou só com uma mão no chão a medir quanto tempo aguentavam sem se mexerem. Depois desmoronavam a rir no tempo deles. Subi do largo Camões ao Jardim do Príncipe Real. Nesse dia não levava câmara. Resistia a comprar um smartphone, mas fui assaltada por uma imagem. Vi Paulo Verona e Sofia Damas num banco de jardim. Os cabelos dela esvoaçavam na brisa outonal, o vestido tinha uma transparência luminosa semelhante à luz dos olhos. Paulo quase sorria. A vida, quando é imensa, não tem palavras, dispensa gestos berrantes. Fiquei por momentos pasmada ( já Diane Arbus dizia que as suas melhores fotografias foram as que não chegou a concretizar). De súbito, relembrei que tinha que apressar o passo. Faltavam vinte minutos para dar o antibiótico a Malu (a cadela). Atravessei a estrada. Mal pus o pé no passeio recebo um telefonema de Paulo Verona. Convidava-me para um jantar comemorativo dos 28 anos de Mira. Do lado de lá ouvia-se o tilintar de louças e outros ruídos domésticos. «Mas, Paulo...». Parece que não havia contexto nem clima para acabar a frase. Virei-me para trás. Uma enorme fila de trânsito vedou-me a visão. Festejavam mais uma vitória da Selecção Nacional com balbúrdia e alarido. Das janelas saltavam expressões, choviam buzinadelas e até dos carros saíam. Também eu abanei a cabeça, esfreguei os olhos, abri-os e fechei-os. Quando cheguei a casa tomei um duche frio. «Ía jurar que vi Paulo Verona no transe contemplativo de um momento, no jardim do Príncipe Real com Sofia Damas.»

Verónica Louise