Álbum de Retratos

Invento-vos como sois (Bergson), mas o essencial de vós escapa aos enquadramentos.


(Imagem : Adama)

Oceano e a Mulher Sonho



Na infância passava horas à janela que se abria para o horizonte e ao entardecer, nos dias quentes e longos, a bola de fogo parecia estar à distância de uma correria para a poder alcançar e fazer rebolar por aí. Quando o verão perdia afirmação, as nuvens que se formavam no céu ao tocarem a imaginação fértil de Oceano ajudavam a erguer um mundo feito de personagens e enredos inventados. O tempo e os modos foram esculpindo alterações na figura do rapaz que tinha o tom de pele do lusco-fusco. Do homem em que se tornou permanece o brilho nos olhos, os lábios agora mais plenos a puxarem o beijo e o gosto de olhar pela janela como o ecrã cénico dos sonhos. O cenário mudara desde que casara com Mariama – uma mulher mestiça como ele, com o tom de pele mais claro e traços de rosto finos a contrastar com a cabeleira negra em carapinha, e um corpo sólido, com ancas acentuadas a tenderem para uma ondulação ligeira. O horizonte deixou de se mostrar nu e aberto; prédios cheios de janelas erguiam-se à sua frente formando uma textura urbana. Agora Oceano, em vez de inventar estórias com a matéria gasosa das nuvens, parecia ver um rosto em cada janela e, por vezes, ficava com a nítida impressão de que esses rostos o olhavam também. Há uma hora para tudo, a hora do tráfego e a hora dos espetáculos e dos filmes. A noite tudo silencia e esbate as linhas que separam e dividem. Intimista e discreta nas suas manifestações, anda em pés de veludo e escapa das expressões cruas que o dia denuncia. Com ela andam os sonhos e também os pesadelos e a luz do luar junta mais do que divide, mas nisso também confunde. Quando o dia acorda, os sonhos adormecem ou deixam de ser vistos e os atores esfumam-se, não deixando nem rasto atrás de si. Creio que o nosso personagem passou a perceber bem isto.


Das muitas janelas e vidas houve uma que prendeu particularmente a atenção de Oceano, ao ponto de o levar quase à obsessão , ao delírio. À hora em que se apagavam as luzes e os olhos se fechavam, ainda assim havia uma janela que permanecia com luz pela noite dentro. Através da mesma entrevia-se uma estranha mulher. Parecia manusear sabiamente a sombra e claridade e, ocultando-se, revelava-se e movia-se em fios de luz que a desenhavam esbelta, ondulante, serpentina…
Tudo começou numa noite em que o mundo já dormia e apenas aquela janela se mantinha iluminada. Um vulto feminino, uma luz difusa e um pedaço de cortinado vermelho preso num dos lados captaram logo a atenção do rapaz que deixara progressivamente todo o pudor e timidez e começara a olhar com frontalidade e vivo entusiasmo. E se tudo teve início com o vapor de uma chávena de chá movida por entre mãos delicadas numa espécie de contra-luz que dava recorte à figura − um ombro descoberto e cabelos longos, negros, a cair em cachoeira −, aos poucos a tendência foi-se intensificando tornando-se num espetáculo estonteante que logo se transformou num private show que incluía a nudez mais ou menos explícita e a dança envolvida num erotismo subtil e ousado. Esta sensação de viva irrealidade foi o suficiente para dar uma reviravolta na cabeça de Oceano. Não sei se as bailarinas são mesmo mulheres. Num certo sentido, parecem de outra espécie; mas, na verdade, aquela figura que com engenho, arte, ousadia e destreza deslizava à frente dos seus olhos no abismo da distância dava a sensação de habitar por momentos outra faixa da vida. E se no início havia o vivo entusiasmo de um espetador a observar um espetáculo digno de apreço, ainda que excitante, a partir de uma determinada altura este homem nada mais queria que ultrapassar a barreira da distância e do desconhecido e possuí-la nua, toda, plena e profundamente. Oceano deixou de aguentar a provocação, não queria mais o jogo, não nascera para viver amores platónicos. Gostava de aprofundar a experiência e para ele isso significava um ato físico de efeito semelhante à sensação concreta de alguém que engole muita água e se afoga. Não a ter assim deixava-o frustrado, embora tivesse presentes as experiências dececionantes que recorrentemente lhe sucediam com as mulheres, que nem sempre são o que aparentam.

 Por outro lado, Mariama andava adoentada. Uma doença rara que nem se percebia. Desfalecia mal o sol se extinguia, como um fantoche desativado. Adormecia num sono profundo e nada a fazia acordar. No seu sono era bela mas nem mesmo o beijo do marido a despertava. Ninguém percebia ao certo o que lhe estava a suceder, nem mesmo os médicos, embora fosse aconselhada a diversos programas de psicoterapia. Quando a luz era intensa, Mariama andava radiosa com o seu sorriso grande, um dos seus maiores dons mas também o seu esconderijo. Esta mulher sorria quando estava feliz; e quando estava triste também sorria. Dava-se ao mundo num sorriso e através do mesmo se fechava. Só um olhar perspicaz e atento poderia perceber as subtilezas e contradições do seu sorriso. Nos últimos tempos era assim: ou se vestia de sorriso ou de bela adormecida. Apenas dois modos. O desencontro devido a horários desiguais e o sono que dela se apoderava à hora em que poderiam estar juntos fez com que a relação perdesse dinâmica e fôlego. Apenas se encontravam nos finais de semana, embora partilhassem o mesmo teto e a mesma cama o resto da semana. Nesses dias, faziam amor mas já nada era como antes e Oceano, quando estava com ela, era trespassado por imagens bruscas da estranha mulher que aparecia à janela. Aos poucos foi passando a vê-la como uma boneca em cima de uma cama que com ele dormia sem reação nem iniciativa.
Durante o dia não havia vestígios da bailarina e nunca se via ninguém à janela. Dela, a vizinhança tinha apenas a imagem de uma estrangeira de uma beleza vaga e fugaz que passava num rasto aqui e ali sem se deter, como uma fagulha de fogo ou um clarão. Decidido a encontrá-la como pessoa real de carne e osso, depois de muitas horas de espera, houve um dia, já noite longa, em que a viu sair de casa. Envergava um casaco preto comprido e no jeito de caminhar parecia um felino. Mal sentiu que a estavam a seguir, acelerou o passo. O silêncio de fundo das ruas que se bifurcavam dava recorte ao som. Ele agarrou-a num braço, com convicção e ordenou-lhe, fitando-a nos olhos que quase cegavam: «Não fujas». Ela obedeceu, parecendo que se tornara líquida. O olhar de ambos tinha uma cintilação intensa . Quando a olhou nos lábios, teve a impressão do vermelho que jamais tivera antes, como se algo comunicasse com ele de forma avassaladora e ambos partilhavam uma postura cúmplice . Beijaram-se ainda levemente, como num prelúdio. Ali, colado ao corpo dela, fervilhante, estava prestes a desvelar o mistério. E ela, dentro daquele casaco, estava vestida como uma cortesã ainda que em traços sóbrios e notas de vermelho sobre predomínio do preto, o que o que a tornava ainda mais apetecível aos olhos deste homem que parecia estar a um passo da realização do seu sonho. Respiração próxima, lábios com lábios, corpo a corpo e a total nudez iminente. Um botão atrás de outro que se desaperta, uma pequena fita que com facilidade de desata, a brancura do seu corpo a aparecer cada vez mais em contraste com o tom mais escuro da pele que a envolvia. Apenas o rosto e o corpo falavam e nela nada era demasiado vulgar. Estava ali inteira, cheia de vida, com a respiração da chama. Mas foi nesta série de movimentos e acentuações iniciais que visavam ascender aos cumes que, de súbito, a mulher se esfuma, se extingue; a figura de carne e osso desaparece e os braços de Oceano abraçavam os seus próprios braços. No seu lugar caem pétalas de rosa da cor dos lábios e dos cortinados… e um perfume indescritível invadiu a rua. Fez-se sentir um bater de asas… Oceano ficou confuso, mas ainda cheio de vida. Nada de semelhante lhe tinha sucedido antes com uma mulher.

Chegou a casa como um bêbado que vê a vida na transversal e tudo confunde com tudo. Para sua surpresa, Mariama não se encontrava em casa e a imagem habitual daquele quarto mudara. A marca do seu corpo nos lençóis, causara-lhe nostalgia e, sem já nada perceber, acabou por adormecer vestido no lugar onde ficara o rasto leve.
No dia seguinte, Mariama quis ter uma conversa “séria” com ele. Verificou, perplexo, a sua expressão mais aberta e determinada e sem vestígios de sonolência. Estava, no entanto, de certa forma, nervosa quando lhe pediu o divórcio. Disse ter encontrado outro amor, um homem que percebera em profundidade todas as nuances do seu sorriso, capaz de beijos de príncipe que a arrancavam do sono pesado. Nesse dia discutiram e o diálogo tornara-se uma oportunidade de acusações mútuas. Também ele a acusou de falta de iniciativa para o surpreender, de sempre ter desvirtuado a dança, do seu marcado desagrado pelo vermelho e persistência nos tons pastel, mesmo sabendo que isso o excitava,  entre outras coisas.

Por vezes, depois do furor, fica a desolação de um fogo extinto. Foi isso que Oceano sentira. Divorciou-se de Mariama e as luzes da outra casa permaneceram fechadas. Nem o mais remoto vestígio da bailarina, mas a saudade invadia-o frequentemente. Por outro lado, Mariama abria-se para a vida como uma adolescente e teve mesmo uma inexplicável vontade de usar um verniz vermelho. Mas o seu novo namorado achava o tom demasiado vulgar; nunca gostara de lábios lambuzados nem vernizes . Ainda mais a mulher que fosse dele… Jamais gostaria de a ver com modos de vestir insinuantes e ares que fizessem lembrar as putas. Apreciava nas mulheres o rosto lavado e com o brilho inteligência.

 Oceano esqueceu Mariama com facilidade e passou a andar com muitas mulheres que seduzia com elogios, surpresas e promessas de amor eterno; mas em todas elas procurava a mulher que se desvanecera numa noite de mistérios. E se Lusana o impressionou com um vestido vermelho justo e decotado, Vera não lhe ficava atrás, com um batom de um vermelho pouco berrante em lábios sedutores e um vestido preto que a faziam ainda mais sexy.  Lygia, então, com aquele corpo escultural e os lábios ainda mais bonitos, um verniz vermelho a aparecer nos pés delicados e um decote arejado de onde uma renda irrompia a acompanhar a vida que explodia, concorria com vantagem com as anteriores e impelia-o a fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para a conquistar. Recorria a todas as técnicas e artimanhas para conquistar todas as mulheres cujo tom e perfume se aproximavam daquela memória e a conquista tornara-se uma das motivações da sua vida. Mas, depois de as levar a vias de facto, perdia o entusiasmo para relações sérias e inspiração para tantas surpresas e elogios. Não conseguia evitar sentir-se um tanto desencantado, como se o tom desvanecesse e o efeito quase heróico em simultâneo se extinguisse. E foi assim, depois de contínuas experiências contrárias à sua elevada expetativa e após ter-se apercebido de quanto fazia sofrer as mulheres a reclamarem o regresso, a exclusividade, a manutenção do amor , assim como esperavam o cumprimento das promessas , que aos poucos Oceano foi perdendo a obsessão pelo vermelho e passara a experimentar uma abertura e libertação no azul. Procurava o horizonte aberto longe do reboliço das cidades e da vida fragmentada. Saía frequentemente para praias desertas, onde se estendia de peito aberto a contemplar o céu livre e iluminado, sem nuvens, sem bruma, sem figuras de entretenimento onde o mar, as montanhas e as pedras eram uma presença incansável. Nisto começara a sentir uma estranha liberdade e uma felicidade sem suporte nem justificação…

A bailarina, essa não era bem uma mulher, talvez por isso não chegasse a perder a intensidade nem as ilusões. Dançava nos intervalos da vida por entre as portas entreabertas, equilibrava-se em fios finíssimos de luz e brincava com miragens e reflexos dando-se sempre a números novos. Aguentava pouco tempo a manifestação e a normalidade. Numas das suas últimas aventuras jantara com um homem como uma mulher de verdade, embora em tudo se parecesse com uma mulher de sonho: lindíssima, sensual, resplandecente e sem idade. Mas extinguira-se em miríades de bolhas no vinho adamado com que brindavam à vida num momento quente, quando o seu decote se abria atrevido, acompanhado de um sorriso que dizia o gozo que dava aquele roçar de pernas debaixo da mesa, com um pé que se libertara da sandália, para entrar no mesmo momento nos sonhos de Oceano, que a reconheceu como uma miragem, bruma, algo de irreal com pouca importância, sem porém deixar de apreciar a sua beleza, a perfeição das formas e a cadência dos gestos. E mesmo cheio de vastidão, de azul e a satisfação que lhe dava essa nova vida sem janelas nem portas, ainda assim, um lado de si parecia aspirar aprofundar mais a experiência com aquela figura que sempre brincara nos seus sonhos mas que nunca percebera ao certo onde era a sua verdadeira morada.