Álbum de Retratos

Invento-vos como sois (Bergson), mas o essencial de vós escapa aos enquadramentos.


(Imagem : Adama)

Hilda Hilst

( Por Fernando Lemos)

Silvana


Meninas crescidas #1

 Aos 57 anos Silvana renasceu. Ao último toque da manhã fechou o livro num discreto gesto decidido e fez deslizar um olhar terno e desprendido pelos seus alunos do 4.º ano, que aos poucos iam abandonando a sala de aula. A professora parecia conhecer-lhes a alma de cor e deliciava-se com os detalhes de cada um. Mas nada disto a faria deter. Avistavam-se novos horizontes. Ainda havia a casa para pagar – está certo - e a sorte a conquistar. Nesse dia Silvana resolveu comprar um chapéu preto (convenhamos: dava-lhe um certo glamour) e foi à casa de banho do restaurante passar batom nos lábios delicados  - ela que raramente usa batom! Pressionou-os para logo os soltar, dando-lhes deste modo um reforço acrescido, e realçou o mar dos olhos. Trata as linhas da vida traçadas na pele com respeito e cordialidade. Achou-se bem. Voltaria a ter mais tempo para ler e escrever, até já sentia o fervilhar de um romance. Passaria a saber dizer “não” e a responder mais tarde aos emails. E foi nesse mesmo dia de tomadas de decisões -quando ao final da tarde folheava um livro de poesia numa livraria da baixa - que, ao levantar os olhos do livro, se apaixonou. Nela a paixão nunca foi gradual. Era qualquer coisa como um reconhecimento súbito e arrebatador. Não sabia se aquela febre seria coisa de dias, anos, meses ou eternidade, mas aceitou o convite para jantar, uma ida ao cinema, um passeio à vila de Sintra...Depois beijou: com o fulgor da primeira vida.


- Verónica Louise 


Albino

Albino é um homem com uma sensibilidade peculiar. Apercebeu-se há tempos,num casual reflexo do seu rosto, do arrefecimento do sol. Na sua postura aberta, na facilidade com que trinca conversas,vinga uma natureza generosa e adaptável. Albino não procura o sentido da vida “além das estrelas” nem se inclina demasiadamente para as “arestas afiadas da vida”.  A sua órbita de ação insere-se neste espaço de diversidades. Apesar da morte que espreitar nos olhos de todas as coisas, ainda se assemelha a um parque de diversões cheio de contrastes, oscilações e o perpétuo baloiçar entre o “sim” e o “não” que reforçam a emoção e sensação de se estar vivo. A comunicação, para ele, é semelhante a um jogo da bola. É capaz de estar um longo período de tempo nesta atividade de agarrar e passar a bola que vai andando de mão em mão. Na verdade, Albino tem os bolsos cheios de coisas giras e de lugares por explorar assinalados no mapa. Ganhariam ainda mais sentido quando partilhados com a pessoa amada ou uma família. Engenhoso e de uma curiosidade aguçada,mal repara na gama tonal de um tom. Procura acentuar os contrastes, percorre dinamicamente todas as cores do arco-íris e até lamenta não haver mais cores para variar.

Este homem sempre teve fascínio por comboios e maquinarias. Um dia pôs mãos à obra e construiu uma linha férrea em miniatura na sala − mesmo junto ao teto − com diversas carruagens, túneis, linhas que se cruzam, iluminação noturna e som a valer. Tudo comandado à distância. Finalizou a obra e ficou satisfeito. Imaginou o olhar radioso de uma criança num rosto que se abre num sorriso fácil com estas coisas que rolam, buzinam e acendem as luzes. Mas com o tempo os comboios começaram a ganhar demasiado pó e a enferrujar, pois foram deixando de ser novidade para ele por falta de os mostrar como novidade a alguém.



Num outro dia, acordou entusiasmado com a ideia de fazer uma festa em casa. Mesmo antes de enviar os convites, começou a preparar um jantar com os melhores vinhos e as mais finas iguarias. Esmerou-se na composição das mesas e optou por um tipo de iluminação difusa e aveludada que facilitasse a união e o romantismo. Barbeou-se e vestiu uma roupa nova sem descurar o sentido prático que lhe é característico. Fez a cama de lavado, selecionou cuidadosamente as músicas e até imaginou coreografias fáceis de salsa para animar os amigos. E viu uma mulher sobressair naquela noite: de olhos cor de mel e pele leitosa a trespassá-lo com um olhar sinuoso e simultaneamente desviante num subtil jogo de agarrar e largar e aqueles movimentos demorados mas esquivos que fomentam uma espécie de sede e uma euforia secreta. No fundo, pensava para si mesmo que não era demasiado exigente para com a vida. Vendo bem o que procurava era uma mulher humana, real: uma senhora, uma companheira. Não precisava ser um estereótipo de beleza exata nem ter a técnica afiada de uma cortesã −apesar de todas essas coisas naturalmente o entusiasmarem (muito mais do que acreditava até a um dado momento). Mas esta mulher não apareceu naquela noite. Aliás, ninguém apareceu porque foram convidados à última hora e já tinham compromissos. Albino acabou por adormecer no sofá com o televisor ligado e os candeeiros acesos até ao romper do dia. Andou mais de uma semana a comer os restos da festa que não houve. Partilhou com os colegas de trabalho e levou bolo de chocolate à rececionista de pele escura que lhe devolveu um sorriso grande de batom vermelho (pena aquele género não o entusiasmar grandemente!)



Albino vive agora com o Petit, um periquito azul que anda às voltas na casa, voa para cima da  cabeça e dos ombros dele, rouba-lhe os fios de esparguete às refeições e anda de um lado para o outro à frente do televisor quando o vê demasiado concentrado nos filmes. Dá-lhe beijos nos lábios quando este lhe ajusta a boca em jeito de assobio, de forma a moldar-se ao seu bico − o que daria, certamente, uma selfy largamente apreciada nas redes sociais. Vive também com Nancy, a cadela branca um pouco felpuda que encontrou abandonada à borda da estrada num mês de agosto e que dá voltas de contente quando ao final da tarde sente o rolar da fechadura. Para além destes dois amigos, temos ainda os matizados peixes cheios de reflexos luminosos a viver num aquário − o que encontrou mais semelhante ao oceano. Apesar desta vida que o circunda, quando ao fim de um dia de trabalho entra em casa, sente que alguma coisa falta. Uma presença mais humana, talvez, com quem pudesse partilhar o pão, o sorriso e as lágrimas; que emitisse palavras e sorrisos e chorasse da mesma maneira que ele. A solidão poderia ter-lhe dado uma maior sensibilidade para apreciar os detalhes da vida mas esta caraterística não encontra nele um terreno fértil. Andar em frente e dar saltos para cima, preencher todos os espaços em branco, isso, sim,  é para ele  tão natural como para o homem civilizado tomar banho todos os dias. Enquanto espera que a vida lhe traga os seus anseios, ao final da tarde, nos dias de semana, lá está ele no jogo da bola que é o facebook onde  já tem  2373 amigos e muitos, muitos gestos de atenção e apreço − o que em  parte já serve de consolo. Por vezes, isto origina um vazio ainda maior pois não faz correr, transpirar e nem desenvolve os músculos. Mas Albino continua com  os bolsos cheios de coisas giras: o goso pela comunicação, o engenho, uma certa capacidade de responder de forma imediata à vida e nela improvisar respostas sempre novas. Características que fariam dele, certamente, um pai brilhante e um marido fascinante. Algumas destas competências partilha-as alegremente com os amigos e amigas; outras necessitariam talvez de um tipo de iluminação e um ambiente mais intimista para se revelarem plenamente. Estas últimas continuam guardadas para a pessoa “especial”  que, à semelhança do rei Sebastião, permanece oculta na bruma à espera do dia em que uma luz mais incidente a revele.



-Verónica Louise


Cadete

Cadete chegou exausto a casa, descalçou os sapatos e aterrou pesadamente em cima do sofá. Quando Mila regressa, diz-lhe estar com uma terrível dor de cabeça. Fechou os olhos. Mal a olhara. Dentro dele fazia-se um curto circuito de emoções amargas e idealismo em retrospetiva. Cadete desde há muito tempo que tem fantasias sexuais com francesas. Numa gaveta do imaginário ainda guarda uma ruiva com franja e lábios cor de framboesa que lhe sussurrava ao ouvido "Je t'aime". Dizia depois outras palavras que só entendia pela entoação sonora, o que bastava para se sentir pujante, imenso. E tinha muitas outras fantasias com mulheres daquele género. Transar nas escadas de uma casa abandonada- encostá-las ao corrimão e penetrá-las por trás; no capot de um Land Rover todo-o-terreno no pico da montanha, rasgar-lhe o decote na esquina de uma rua de calçada de granito, assistir a uma cena escaldante entre amigas... E foi ao percorrer o caminho de Santiago, de bicicleta  com mais dois amigos, que conheceu uma francesa. Não era loura, era morena. Andava de calções e de botas de montanha mas pareceu-lhe atraente. Trocaram olhares fulminante, sorrisos que se transcendiam e a voz dela era sensual, expressiva. Continuaram depois com sms e conversas no chat do facebook  misturando palavras inglesas e francesas. Três semanas depois a  rapariga aterra em Lisboa numa espécie de urgência. Alugara um quarto de hotel para tão ansiado encontro. Mas por mais estranho que pareça Cadete não se veio. Talvez tivesse sido do hotel, afinal tão limpo, plano, directo; com luz em demasia a entrar pelas janelas e a certeza sem margem de risco. Discutiram e não se entenderam. Ele acabou por sair do quarto deixando a rapariga entregue a ela mesma numa cidade desconhecida.

Mila constatou que o marido estava mesmo a dormir e não o quis acordar. Ligou a televisão e assistiu a mais um capitulo da telenovela.  Tinha que esperar que ele abrisse os olhos para lhe mostrara o novo corte de cabelo.


- Verónica Louise

AMADIS




No início da primavera, uma folha desprende-se ainda verde da árvore. Naquele momento súbito e inesperado, não sabia se rir se chorar. Ficou atordoada, perdida. O vento nesta época não se sente particularmente inclinado para dançar com as folhas, nem estas têm leveza suficiente para a dança. Anda envolvido com as flores, mareado na diversidade de cores e perfumes. Não se destaca particularmente −é apenas uma fragrância. Só quando as folhas ganham desprendimento e uma dourada leveza − algumas pintam-se de um laranja avermelhado de  aparência um tanto fogosa − é que estão preparadas para a dança entregando-se airosamente nos seus braços e ao som de uma luz suave e lânguida iniciam com ele um bailado. Só nesta altura é que o vento se destaca conduzindo-as a seu bel-prazer. Depois de tantos rodopios e giros diversos, as folhas acabam exaustas, feitas húmus que alimentará outra primavera por vir. Mas o vento nunca pára nem se detém. Continua depois a sua ronda pelo inverno fora,cada vez mais afiado e independente, a correr tantas vezes em fúria e assobios loucos. Leva sem freio todas as coisas pela frente até esbarrar mais uma vez na estação do perfume e das flores que com tamanha sedução o apazigua e silencia. E assim, mudo mas de alma inteira, volta a exibir a primavera e, destacando-lhe o perfume que espalha em redor, coloca-se em segundo plano. Precisamente por ter caído nesta época  é que a pequena folha correu o risco de morrer antes de tempo sem verdadeiramente viver o seu potencial.
Um dia, um rapaz, ao passar por ali com uma câmara fotográfica de turista, reparou nela e ainda pensou em devolvê-la à árvore, mas depois de se desprender nenhuma folha retorna, pelo que só conseguiu mesmo a fotografia de um pormenor. Houve, porém, uma menina de cabelo comprido, solto, fino,airosa e esguia, que ao andar por aqueles lados a saltitar, movida por uma imaginação que era só dela, espontaneamente a colocou na palma das  mãos e a levou com cuidado para casa. Deixou-a num copo de água − não fosse por lá perder todas as hipóteses de vida − e foi olhando atenta dia e noite. Com o tremendo potencial que a folha tinha, constatou com surpresa que ganhou raízes e na altura certa lançou-a à terra com a mesma delicadeza e atenção nos gestos. A planta lutou tanto, mas tanto, para sobreviver que chegou mesmo a tornar-se uma árvore sólida e frondosa cheia de folhas e flores. Ainda hoje é uma árvore resistente que dá muito de si − conhece os segredos dos amantes, a conversa das mulheres , de todos os que se detêm na sua sombra; sabe de cor os movimentos dos astros e conhece os segredos dos mundos ocultos que se escondem nas suas raízes. Na primavera é bonita, mas no outono é um espetáculo maravilhoso, um tanto nostálgico, ver as folhas iniciarem a partir dela a sua dança à luz do entardecer. Apesar de generosa e de ter adquirido a sabedoria, a serenidade e a capacidade de sobreviver firme aos temporais e à dureza do inverno, a observar os fenómenos sem se destabilizar, há quem diga que nos dias de lua cheia esta árvore secretamente chora por uma qualquer nostalgia de nunca ter podido ser folha bailarina, vulnerável e dançar com o vento dando-se a uma entrega e morte fáceis − mesmo sabendo que raiz, ramos, folhas e flores são afinal diferentes traços com que se desenha uma árvore.

(Foi esta a história que vi nos olhos de Amadis, um  negro;num dia sublime – inesperado − em que o sol se misturava com chuva e trovões. Num final de tarde, ainda verão, na serra de Sintra quando a terra − faminta daquela água que caía sem freio dos céus − exibia no verde viçoso uma inigualável glória.


Dias depois, Amadis adoeceu. Com a o nevoeiro espesso que se impôs, perdi o acesso ao seu olhar terno, fundo...

Verónica Louise