Álbum de Retratos

Invento-vos como sois (Bergson), mas o essencial de vós escapa aos enquadramentos.


(Imagem : Adama)

M.

1.
No momento em que o violino intercetou a melodia acústica de uma Morna – cantada com toda a alma na voz de uma mulher de idade madura, a quem o tempo dera tempero à voz e espessura ao porte –, os olhos de M. invadiram-se de lágrimas. Elevou as mãos  à cabeça e afogou-se ainda mais na boina com uma pequena pala que fazia alguma sombra no rosto, sem, ainda assim, conseguir esconder completamente esse excesso que não gostaria de exibir tão cruamente aos olhos do mundo: « Um homem não chora!». E ali ficou um tanto discreto, na cor suave com que a terra lhe pintara a pele, por entre uma pequena multidão a assistir ao espetáculo. Aparente tranquilidade ameaçada  por um turbilhão interior a desfazer o equilíbrio formal da figura. Homem de poucas palavras, de escassos sorrisos, quando rasgava o silêncio era para cantar; quando quebrava a imobilidade era para dançar,correr, amar. Sempre pronto a travar uma batalha, fazer justiça (e injustiças),defender os amigos ou simplesmente por uma qualquer necessidade de se expressar porque a sua paisagem era um campo vasto e no braço sólido, apesar de magro, trazia tatuado um centauro: metade homem, metade cavalo. Portanto, M. tinha momentos em que precisava de palcos, de aplausos, de luzes incidentes, de gerar calor, de intensificar a vida. Fora esses momentos – os “ grandes momentos” –,fechava o rosto, economizava palavras, engolia as lágrimas, fermentava a vida e naquela noite – embalado na melodia que reforçava ainda mais a imagem memória de Clarisse – desabava por dentro, tornava-se secretamente frágil e a vida nele tinha o modo doce e amargo daquela melodia.

2.
M. nunca mais foi visto no bar da Bia a desfiar cantigas. T. chegou a comentar por alto que passou um período em que mal comia e se entregara ao isolamento. A mulher que o observara naquela noite, com quem trocou algumas palavras sobre a música, a quem deu o número de telemóvel num papel manuscrito (por o ter chamado a atenção pela diferença) procurou-o dias depois com o olhar no mesmo local, mas sem sucesso (abandonou o papel numa gaveta pela própria erosão de sucessivos desencantos). Tomaria o comboio que o levaria a Paris – a cidade onde estivera há três anos integrado numa companhia de dança afrocontemporânea com bom desempenho. Com ele levou as coisas que não ocupam volume nem pesam: o dom da voz e do corpo, a figura como um apelativo cartão-de-visita e a semente amarrotada para o reinício. Trocou o computador portátil por umas botas de atacadores pouco acima dos tornozelos e um casaco folgado (cheio de botões e golas grandes a fazer lembrar os poetas românticos) com um estudante de filosofia. Só faltavam os focos de luz do cinema para o tornar uma figura de filme – apesar de já não tomar banho há três dias. E a boina.

3.
O movimento do comboio varria a paisagem e deixava Lisboa distante. A ideia de Clarisse ia adormecendo pela própria repercussão do movimento  como um embalo dentro. A tarde deu origem à noite; a noite, ao desfazer-se, foi substituída pela manhã que entra pela janela do comboio em bicos de pés. M. volta a afogar o rosto na boina, agora para fingir a  noite e prolongar o sono. O corpo em abandono dava o efeito de um boneco de trapos a perder consistência. Quando a manhã se impôs, começou por recompor a postura e aliviar o rosto. A luz de uma mulher bonita, jovem, que seguia agora no banco da frente (nos olhos bailavam-lhe reflexos de lume tímido e o conjunto misturava o equilíbrio do clássico com a originalidade assimétrica do contemporâneo) assaltou-o. Quando sentia que ele não a observava lançava-lhe um olhar breve, rasante, para voltar depois a focar a atenção no desfile corrido da paisagem. Quando o breve instante de ambos coincidiu o mundo estremeceu (só que ainda era segredo). M. tirou a boina, elevou as mãos à cabeça recompondo-se do sono e de um certo desconforto do corpo. Os lábios de tentação dela iluminados pelo sol eram o íman para os olhos dele. Um horizonte de motivação começou a adivinhar-se em silêncio.

(Mudar de mulher é como mudar de paisagem,mas o sol continua a nascer e a pôr-se em todas elas.)

Pedro

Pedro também ganhou um prémio: melhor aluno de engenharia informática!Mal acabara de ler o mail, já estava em cima da cadeira com os braços aberto a uivar como um campeão:« SIIIIIIIIIIIMMMMMMMMMMM».Encontrava-se sozinho em casa quando recebeu a notícia, mas rapidamente assumiu uma identidade de dia de festa e tomou a distinção de um sol. O mundo estava agora ali, a seus pés.(Subitamente, o silêncio da casa ganhou dimensão). Olhou a fotografia pendurada na parede. Ele no meio dos pais. Três sorrisos que mais pareciam um só. Baixou os braços. As lágrimas planaram nos olhos. O sorriso amadureceu. Será que ainda o poderão ver e ouvir? E que orgulho! Que orgulho! Voltou a sentar-se. Recolheu a loucura para dentro de casa. Releu com mais atenção o mail. Quando se aproximou dos olhos esmagadores desse mundo pregados nele, escondeu o rosto por entre as mãos. Bastava ter de dar uma aula para estremecer. O que iria dizer?  Quem não poderia esquecer?  Afinal: que interesse é que um prémio tem? O que significa tudo isto à escala global? Vendo bem, sentia um certo conforto na insignificância de grão de areia no deserto enamorado do luar e do amanhecer , mais do que nesta alucinação narcísica com densidade real.
E o dia chegou. Levou Lídia, como não podia deixar de ser, pela mão; convidou as irmãs e os cunhados, o Dany e a Carla . Para sua surpresa, não subiu ao palco nem o esperavam uma multidão . Recebeu o prémio com uma alegria natural . Ainda assim, a sua irmã Carminha chorou de comoção . Uma parte era ela, outra - a expressão que emprestara à Mãe.

Alice

1.
Alice sempre demonstrou uma admirável aptidão para estruturar a vida: separá-la por cores, diferenciá-la por temas; traçar e cortar linhas precisas. Intervinha apenas no momento oportuno; dava aos modos um lustro distinto. Até que uma corrente intempestiva, imprevista, lhe puxa violentamente o tapete,derruba os planos,faz explodir os limites.

2.
«A operação correu bem»(respira-se de alivio; iluminaram-se as lágrimas, os detalhes ganharam um valor imenso). 

3.
Alice ergueu-se a custo.Olhou olhos nos olhos o sinistro e, ainda dorida,retomou o seu posto de fortaleza: ser mãe-incondicionalmente.

- Verónica Louise