Álbum de Retratos

Invento-vos como sois (Bergson), mas o essencial de vós escapa aos enquadramentos.


(Imagem : Adama)

Paulo Verona

1.

Paulo Verona apesar de morto continua vivo – mais que tudo no coração de muitas mulheres que veem naquela estátua alento e inspiração acrescida. «Não há nascimento nem morte» – ouvimo-lo muitas vezes. Para muitos, apenas uma afirmação digna de respeito. Agora as mulheres, com o coração ao rubro – nos olhos, nos gestos –, apreendem o sentido das palavras a partir de uma visão interior, característica de uma sensibilidade fina. Orion – uma rapariga de longos cabelos, perfeita metáfora do vento – desde tenra idade previu uma estátua de honra e de mérito. Não dele, mas dela – só por ser sua filha. Quanto agora passa pela representação do pai, o rosto vacila entre as lágrimas e uma abertura cristalina. E o passado atopela-a: as brincadeiras à beira-mar, as estórias intermináveis, um tanto surreais, onde a loucura e o amor eram os grandes protagonistas num humor que os fazia morrer de riso. O filho – um rapaz com a postura nobre de um cavaleiro dos tempos idos e uma sensibilidade líquida que vence a armadura –, mesmo pequeno, tinha que impor ordem naquilo: «Já chega, pai. Agora já chega.» E adormeciam, tantas vezes com a roupa que traziam, enrolados uns nos outros, exaustos e felizes como atores esvaziados de cena. Era assim que Verona agitava a mundo, o virava do avesso, naquele Carnaval em família com os seus dois filhos e as mulheres que se sucediam. Depois voltava ao alinhamento reto de professor catedrático, mais tarde presidente, onde só dava para ver uma seriedade digna de respeito suportada na solenidade de um rosto que mal se movia. Também por isto parece vivo. Mas Verona não fora só uma pessoa na linha. O homem a quem alguns chamaram Mestre – constantemente convocado para ocupar cargos de chefia, parecendo colecionar títulos, forrar prateleiras de livros e encher páginas de currículo – tinha a sua loucura secreta: havia dias em que deambulava  nas ruas à noite, dava pontapés nos postes e virava bidões do lixo; escrevia frases nas paredes, dormia nas ruas ao lado dos sem-abrigo, repetia bem alto «Quero ver Lisboa a arder!». Depois imaginava um homem e uma mulher num amplexo amoroso reemergirem entre as chamas num amor maior do que o mundo. A verdade é que ninguém lhe conhecia estas facetas e, por mais que gritasse nas ruas da capital – «Quero ver Lisboa a arder!» –, as pessoas não acordavam nem vinham à janela. Mas a morte a Paulo Verona nunca lhe causou medo. Era uma experiência que integrava no quotidiano. Ainda me lembro quando saía fora do corpo e ficava assim mesmo, a deambular por mundos imaginários, parecendo deixar a figura programada em jeito de concordância cordial com conversas aborrecidas («sim», «pois», «compreendo»). A contrastar, ganhava nova vida ao falar para as multidões. Também por isto parece vivo. Quem seria o artista que conseguiu expressar em linhas tão realistas a leveza do seu gesto de mãos, quando citava e recitava os sábios e os poetas, o rosto fechado, o sorriso velado, o olhar para dentro? «Ia jurar que vi o meu pai sorrir!» – confessava às paredes Orion. Corria um burburinho entre mulheres que também diziam ter visões – alucinações puras – que alimentavam o mito. O mais estranho era que os homens nada viam. A não ser o seu filho. Esfregou os olhos, abanou a cabeça e correu a procurar uma explicação científica ao ter a impressão de ver o rosto da estátua do seu progenitor encher-se de ternura. Os homens da capital tinham, para com o homem que deu voz aos animais e atenção aos loucos mais desfavorecidos, respeito e admiração enquanto vivo. Receberam com agrado a estátua, ninguém exigiu grandes burocracias, mas, por estranho que pareça, começaram a desesperar-se com o alvoroço feminino. Houve mesmo um homem que, numa noite, ao ver a mulher tão sensual como jamais a vira, dançar  ao redor da figura ao ponto de mostrar os seios num transe incomum, pegou, desesperado, numa marreta  com a firme convicção de transformar a escultura em pedacinhos. O que valeu foi ter aparecido casualmente o filho de Verona com amigos, evitando a concretização do objetivo. As mulheres tentaram tornar-se mais discretas para dispersar as atenções e acalmar os ânimos. «Vejamo-lo nos nossos maridos» – sugeria Gilda,  recorrendo a ideias expostas num livro que o professor escrevera sobre o uno primordial e o sabor único. Eis a mulher que se tornara uma espécie de porta-voz de um clube  de fãs com tendências eróticas e místicas, citando-o com frequência. Quanto à minha pessoa, o simples facto de andar com uma câmara tem-me levado a observar as reações humanas com alguma atenção, dando-me permissão para entrar e sair à vontade nas portas principais e  passar nas travessas. Como tal, facilmente penetrava no círculo. Mesmo conhecendo desde sempre o fenómeno e ter privado de perto com Paulo Verona, dava por mim surpresa. Aconteceu estar a fotografar a estátua ao raiar do dia, por pedido de Gilda. Precisavam de fotografias apelativas, cuidadas, para o grupo e até eu tive a sensação de ver a estátua prestes a desmanchar-se de riso! Aquele riso, como vi tantas vezes em vida, perante a tragicomédia da existência. E comecei a rir sem freio, como se fôssemos cúmplices e não estivesse ali sozinha. Tendo-me desconcentrado tanto, adiei as fotografias. Ria por dois motivos: porque tomei consciência de toda aquela loucura, alucinação febril, e porque me vi igualmente tonta. Mas, no meu caso, entendia-se. Eu nunca fui muito presa ao concreto e tenho por hábito reinventar o mundo. Depois de tanto rir, passei ao outro extremo: comecei a chorar a sério. Tive saudades daquele amigo...


2. 

Sempre houve uma nota de mistério na vida de Paulo Verona (em parte, isso atribuía-se à expressão. O seu rosto era ausente da atmosfera que emana das personalidades mais mediáticas. O seu olhar ardia para dentro. Exteriormente, economizava expressões. Ainda assim, tocava as multidões e deixava um fio de ternura no interlocutor). As circunstâncias da sua morte não foram exceção. A notícia teve o seu momento solene na voz de Sofia Damas (cabe-me aqui fazer uma referência a esta mulher. Poderíamos dizer que foi a sua última e mais importante amante – no sentido genuíno que o termo pode compreender – para aquele que tinha o "casamento" e o "impossível" como as mais secretas aspirações. Este amor ganhou toda a intensa carga de significado que habitualmente se atribuiu ao primeiro. Sofia não era só uma mulher apelativa do ponto de vista físico. Revelou também uma inteligência fora do comum. Resolveu, de um modo admirável, este binómio aparentemente inconciliável. E triunfou sempre pelo lado do amor apaixonado. Essa energia que eleva o gesto a uma dimensão heróica, sem a qual aquele que foi seu marido não podia criar. No primeiro momento em que os olhos de Paulo tocaram o verde dos de Sofia, deu-se um fenómeno que não tem significado nos dicionários. Não lhe restavam dúvidas: aquela sempre fora, deste um tempo anterior ao tempo, a sua mulher. Quis logo fundir-se com esse absoluto. Casaram. Percorreram as diferentes tradições religiosas. Disseram sempre “sim” em muitas línguas e credos e passaram mais de uma vez por aquele momento tocante de arrepiar a pele a fazer bailar as lágrimas. Após três anos, divorciaram-se para se amarem melhor. Os casamentos foram anunciados a letras gordas e o divórcio comentado com algum pesar. Quando Sofia sentiu uma espécie de arrefecimento do amor heróico, quis divorciar-se. Passou para o plano do impossível e tornou-se inspiração pura, loucura declara, interdito desconcertante. Se não tivesse de respeitar o tempo de um conto, podia relatar a saga desta paixão com algum pormenor. Seja como for, quando anunciou a sua morte, estavam divorciados. Num certo sentido, mais casados do que nunca. A imprensa sempre revela o lado mais superficial) com direito a um longo tempo de antena onde o silêncio devorou as palavras e reforçou os olhares. Também eu fui apanhada de surpresa. Cheguei a ficar indignada com o ar fresco parecia feliz de Sofia Damas ao relatar o sucedido. Vinha com um vestido raiado da cor dos olhos, alças e cair leve. Nada por dentro dele interrompia a respiração natural da pele. Faziam-se notar, ligeiramente, os bicos dos seios. A sua vocação natural para a beleza dispensava qualquer reforço artificial. O cabelo castanho claro, pouco abaixo dos ombros, também tinha um cair natural. Sofia dizia que Paulo Verona partiu em paz na Índia e as suas cinzas foram lançadas no rio Ganges. Apanhou a população desprevenida e apreensiva por não terem nem o corpo para lhe prestar a última homenagem...  Depois, Sofia pediu alegria porque ele estava vivo no coração de cada um, na imortalidade dos livros, na obra a continuar. Passados quarenta e nove dias, pela calada da noite, na esplanada da Graça, em frente à igreja, ergueu-se a estátua. O Tejo em frente e a cidade das sete colinas estendida por baixo do céu.  Desconhece-se o autor daquele realismo e riqueza de pormenores absolutamente genial. 


3.

Passaram três anos. Quase  impercetíveis. As chuvas, os ventos, as modas não apagaram a memória nem refrearam o entusiasmo. A vida reinventava-se. É claro que o fenómeno se tornou mote de artigos e debates, críticas sarcásticas, objeto de investigação sobre comportamentos. Paulo Verona ganhara uma espécie de imortalidade. À volta da estátua encontravam-se poemas, citações, vestígios de roupa feminina, bebidas e perfumes exóticos... E Gilda prosseguia de alma grande. Deixara de ter depressões e exibia um potencial insuspeitado até então. Continuava a citá-lo. O círculo alargava. Algumas mulheres dançavam, cantavam, declamavam poesia, encontravam significado em tudo. Nos intervalos da vida eu observava. Nas horas que desfaziam o sol no horizonte, o passado chegava-me como uma lufada de  pólen. Voltava a rever o amigo naquelas mesas numa relação apaixonada com os livros, a sublinhar passagens a cores de fogo: Nietzsche, Cioran, Pessoa, Pascoes, Sampaio Bruno, Eckart, Chögyam Trungpa, Nagarjuna... Os livros sempre foram os seus amigos de jornada  (a visão panorâmica intercetava a paisagem humana, a brisa fazia flutuar os vestidos e os cabelos das mulheres e trazia o coração à flor da pele numa entrega e abertura de lágrimas). Às vezes sentia-me pouco séria, já tudo me parecia uma música batida. Eram demasiadas manifestações e emoções. Quase sempre adivinhava o gesto que vinha a seguir. Até que comecei a reparar numa jovem mulher diferente. Ninguém lhe dava importância. Era difícil expressar-se, movia-se com lentidão num corpo um tanto amorfo. Tinha uma doença que habitualmente se designa por Síndrome de Down, creio. Cantava com frequência (desafinada. A dicção era pouco límpida). Algumas raparigas olhavam-na de esguelha, outras esforçavam-se por a aceitar com ares compassivos. Não era levada muito a sério por ninguém. Passei a observar Mira com mais atenção e assisti a profundas mudanças de comportamento para com a mesma. Mira passava ali muitas horas. À força de tanto vibrar, imaginava-se, certamente, mais fluída do que a imagem que exteriorizava quando dançava. Talvez fosse benéfico não ter total consciência das suas aptidões para o canto e assim continuar a "espantar" a tristeza. A expressão do seu rosto era sempre de boca aberta; o cabelo, com franja, escorrido, abaixo das orelhas, tinha pouco volume e colava-se à cabeça. Ainda assim, demonstrava inteligência e vontade de se superar. Gilda ganhara para com ela uma simpatia verdadeira. Depois de umas passagens de textos de Paulo Verona sobre um modo de amor que a todos inclui, começaram a aceitar as diferenças. Um dia, a jovem mulher chamou Gilda à parte e, meio rubra, com os olhos a saltar ora para o interlocutor à sua frente, ora para o chão, pediu-lhe para a ajudar a realizar um sonho: beijara a estátua. Gilda abanou a cabeça e, entre sorrisos, disse: «Mas como, menina!? As estátuas e as fotografias não se beijam nem o arco-íris se toca. Iluminam-nos a vida, inspiram-nos, mas beijar, beijar... É mesmo pedra que tu queres beijar!? Além disso podes desequilibrar-te...». A rapariga que vira tantas vezes o seu entusiasmo morrer, nada concorrida como mulher, choramingou. A outra olhou-a nos olhos. Calou o rosto. Elevou o olhar para a estátua («Afinal, és pedra. Não tens existência real. Nunca te poderemos sentir como quem põe a mão no fogo e se queima») e logo o deixou cair no chão. Depois de um longo momento de silêncio, consentiu a loucura. Iria ajudar a amiga a aceder aos lábios da estátua...

4.
Já a noite ia longa quando Gilda estacionou o carro no Miradouro da Graça. A luz prateada de uma grande lua espalhava-se na cidade. O mesmo brilho alagava os olhos de Mira. Gilda tinha o coração em sobressalto, prestes a cair-lhe aos pés ao ver aquela criatura frágil, de passo incerto, subir os degraus do sonho, resoluta, apesar das limitações que todos lhe conhecíamos. Gilda roía a unha do dedo indicador. Esquecia a compostura. Quando a rapariga apoiou a sua mão numa das mãos da estátua e atingiu a plataforma mais estável, finalmente respirou. A sombra do pensamento racional, difícil de evitar, ameaçava o sentido da sua vida nos últimos tempos. Mesmo sabendo do seu contributo para criar situações como esta. Mira olhou de contente para baixo e acenou com a mão. Depois, extasiada, ficou ali num pasmo sem igual. O ensaio do beijo demorava. Aquele encantamento, quase constrangedor, começara a impacientar Gilda («Isto já é demais!»). «Mira, estás bem?» Não respondia. Ficara pasmada. E não era para menos, visto que não estava perante a representação da vida. Tocara o milagre. Esta história pode até parecer ter semelhanças com a da Bela Adormecida. Neste caso, foi no beijo de uma princesa insuspeitada que Paulo Verona descera, ficando provado que estava vivo. Contemplou durante três anos a fio o céu, o desfile do mundo. A fome e o frio não o derrubaram. Atingira um admirável domínio  da mente e do corpo (mas seria o amor que ainda o desconcertou!?). Ele era uma estátua viva. Mais do que uma estátua viva: era um yogui altamente realizado. Iria de imediato para o Guinness  deixando o mundo boquiaberto (enquanto isto, Sofia Damas, na sua despedida de solteira, fazia um brinde à liberdade, essa coisa imensa, e começou a dançar descalça em cima da mesa de um bar de estilo rústico. A alça do vestido deslizava deixando quase escapar um seio. Os movimentos do corpo nasciam na mesma progressão do alaúde  de um homem oriundo do norte de África que ali entrara autorizado a pedir moedas aos clientes que se deixassem impressionar com a sua arte. Os olhares masculinos devoravam Sofia; o estrangeiro afinara através dela o ímpeto e o gerente, também ele fascinado, consentia. Caíram muitas moedas e notas para a mulher e o desconhecido, mas a bailarina deixou-as com o músico, enquanto as amigas aplaudiam encantadas aquele rasgo de inspiração inesperado. Sofia, a única que desde sempre conhecera o segredo de Paulo Verona, fê-lo em jeito de celebração. Entre ambos nunca houve longe nem distância).

5.

Como o leitor já deve ter percebido, desta vez o impacto de tão insólito acontecimento fora sem precedentes. A vida de Verona voltou a fazer correr tinta. Formaram-se grupos de investigação, abundavam colóquios e conferências que abordavam as questões do cérebro, o controlo da mente e do corpo; proliferou o comércio de acessórios e materiais para estátuas e, embora muitos aspirassem a tão prodigioso estado, faltava-lhes a persistência e a disciplina de longas horas de treino, condição imprescindível para chegar ao ponto em que a imobilidade se tornava paz e liberdade. Paulo dava entrevistas, escrevia artigos sobre o tema, abriu uma escola para as pessoas interessadas em comprometer-se de uma forma mais séria. Lisboa atraiu mais turismo. Por todos os lados se erguia uma estátua de maior ou menor duração. Com isto, Gilda, surpreendentemente, entristecia. Aos olhos desta mulher, o professor, apesar de vivo, parecia morto. Ela não o reconhecia. E claro que estava diferente: mais jovem; ria e sorria com facilidade. Perdera a pose grave, vestia-se de um modo mais descontraído, ficava nas fotografias com uma abertura contagiante... Embora ajudasse a formar estátuas vivas, depois de três anos de imobilidade e silêncio só tinha vontade de dançar. Mantinha, para com a sua mulher que virara uma espécie de heroína, um olhar atento. Lia agora menos. Viamo-lo frequentemente com o seu gato metade branco, metade preto Eusébio. Gilda vira o seu empenho de três anos cair e voltara a entrar em depressão, chegando mesmo a dizer a Verona, a soluçar, com o rosto encharcados de lágrimas, que não queria ser estátua. Não sentia esse apelo dentro dela. Paulo, a contrastar, lançou-lhe um grande e terno sorriso: «Amiga!, nem todos temos que ser estátuas vivas. Nada está perdido. Com a experiência que acumulaste, porque não escreves uma obra “O pensar no feminino”?» A rapariga enxugou as lágrimas e iniciou na sua vida um novo ciclo: tornou-se uma escritora bem-sucedida com esse primeiro livro prefaciado e diversas vezes citado por Paulo Verona. Foi a partir daí que retomou o rumo da sua vida.

6.
Com o tempo, deixei de ir com tanta frequência ao Miradouro da Graça. Aquela zona ficou mais silenciada. Continuava a fazer grandes caminhadas pela capital. Percorrer a cidade é como ler um poema. Ainda mais quando a pressa dos dias abranda e as sombras se distendem na luz dourada. As estátuas tornavam-se uma presença um tanto familiar. Animavam a cidade. Por vezes, olhava-as fixamente nos olhos tentando perceber o grau de realismo e seriedade das mesmas. Nalgumas ainda se sentia agitação interna. Algumas representavam figuras histórias, outras absolutamente peculiares e contemporâneas; havia-as muito simples, despojadas de ornamentos. Era frequente ver adolescentes em jeito de gozo com as mesmas. Faziam-lhe cócegas, depois punham-se com caretas ao lado delas e saía uma selfie. Nos fins de semana, viam-se muitos no Largo do Martim Moniz a fazer pinos, apoiados na ponta de um pé ou só com uma mão no chão a medir quanto tempo aguentavam sem se mexerem. Depois desmoronavam a rir no tempo deles. Subi do largo Camões ao Jardim do Príncipe Real. Nesse dia não levava câmara. Resistia a comprar um smartphone, mas fui assaltada por uma imagem. Vi Paulo Verona e Sofia Damas num banco de jardim. Os cabelos dela esvoaçavam na brisa outonal, o vestido tinha uma transparência luminosa semelhante à luz dos olhos. Paulo quase sorria. A vida, quando é imensa, não tem palavras, dispensa gestos berrantes. Fiquei por momentos pasmada ( já Diane Arbus dizia que as suas melhores fotografias foram as que não chegou a concretizar). De súbito, relembrei que tinha que apressar o passo. Faltavam vinte minutos para dar o antibiótico a Malu (a cadela). Atravessei a estrada. Mal pus o pé no passeio recebo um telefonema de Paulo Verona. Convidava-me para um jantar comemorativo dos 28 anos de Mira. Do lado de lá ouvia-se o tilintar de louças e outros ruídos domésticos. «Mas, Paulo...». Parece que não havia contexto nem clima para acabar a frase. Virei-me para trás. Uma enorme fila de trânsito vedou-me a visão. Festejavam mais uma vitória da Selecção Nacional com balbúrdia e alarido. Das janelas saltavam expressões, choviam buzinadelas e até dos carros saíam. Também eu abanei a cabeça, esfreguei os olhos, abri-os e fechei-os. Quando cheguei a casa tomei um duche frio. «Ía jurar que vi Paulo Verona no transe contemplativo de um momento, no jardim do Príncipe Real com Sofia Damas.»

Verónica Louise


Lúcio



Lúcio é um homem branco. Sempre procurou afinar o seu tom com a mesma precisão e agudeza com que se afina um violino. O seu objetivo visava a transparência. A sua casa ( lar aconchegante) desmoronou após uma festa de anversário com cintilar de copos e sorrisos que em unissono brindavam  « à vida!» - e desde então  Lúcio percebra: pode percorrer o mundo sem sair do lugar, o universo é o seu aconchego, o saber tem na verdade sabor, o amor até pode prescindir do tesão e abraçar com loucura a razão. Questionar é viajar. Com o final trágico e inesperado da festa, Lúcio derramou lágrimas abundantes, mas de tão claro, as lágrimas transparentes na sua pele mal se notaram. Porém, no lado invisível, houve maremotos, sismos e vendavais. Já o sorriso que esboça quando está prestes a descortinar a verdade como qualquer coisa vasta e intangível – pressentida no olhar das coisas, denunciada numa pegada, numa estrela, pedra ou flor − ganha mais destaque. Ilumina-lhe o rosto de tal forma que parece um pássaro branco a rasgar em alvura os fumos negros da poluição das grandes metrópoles.

Toda a vida interior de Lúcio conflui para as mãos: cálidas, aladas, puríssimas, movendo-se numa cadência suave como quem tem tempo e vive sem pressa. Todos os outros aspetos da sua figura são de uma forma pouco lapidada. Foi engordando com o tempo, o cabelo em desalinho foi-se extinguindo e as roupas usa-as sem critérios e em camadas simplesmente para o protegerem do frio e assim poder estar confortável a assistir ao espectáculo fervilhante do universo. Os olhos irrompem diversas vezes em cintilações livres, libertando-se dos espartilhos da idade em lampejos de frescura e jovialidade.

Talvez por se ter tornado tão translúcido e introspectivo não ganhou um realce particular na sociedade apesar da sua inteligência acima da média. Nunca teve amigos aos molhos, mesmo sendo marcado por uma natureza prestável e calorosa. É também por este mesmo motivo que não há grandes histórias a contar sobre este personagem. As transformações que ocorriam a nível interior mostravam-se nos detalhes, nos passos que dava na linha reta à beira do Tejo. Sempre o conhecemos com Lyra, a mulher que o acompanha deste tenra idade e por quem se apaixonara por os seus olhos lhe parecerem música. Antes de Lyra sonhava com Kety, uma boneca antiga com uma espessa cabeleira, arrumada no baú do sótão, a quem nunca trocaram de vestido − o que até lhe conferia encanto − nem reagia entusiasticamente ao sorriso dele, mas que apesar da antiguidade ele renovava com viva imaginação. Com ela aprendeu a ver o amor humano como um fenómeno de projeção individual que nem sempre se molda ao nosso gesto nem acompanha a nossa velocidade. Lyra, ao contrário de Kety, é uma mulher de verdade. Daquele tipo de mulheres tão entrançadas na vida de um homem que mal a conseguimos ver na sua forma singular. Beleza simples, gestos discretos e naturais, inteligência discreta. Embora percorressem durante diversos anos o mesmo caminho nas margens do rio, a forma como estas duas figuras se foram posicionando no espaço sofreu alterações até desaparecerem de vista. Quando ainda transpiravam juventude, pedalavam de sorriso grande pois todos os fins de semana a família era festa e havia bolo quente em casa da mãe. Ela na sua bicicleta cor-de-rosa, os calções curtíssimos a destacar a figura esbelta e bem recortada e ele numa bicicleta azul com autocolantes de golfinhos e morcegos com óculos de sol, o ténis a abrir no lugar do polegar, como que a extravasar os limites e a contestar a vida material.



Passados alguns anos, o sorriso ficou menos efusivo e as bicicletas saíam com menos frequência até  se perderam de vista ficando o Tejo e as coisas grandes e abrangentes como a luz que brilha e se desvanece, a planura onde outros personagens talvez mais coloridos agora desfilam. Creio que a ausência neste lugar se prende com o facto de Lúcio ter atingido um grau de transparência tal que começou a sentir dificuldade em se ver ao espelho, deixando também de se ver refletido no rio, nas montanhas, nas pedras, assim como de obter as respostas que daí advinham. Entretanto também engordou demasiado, mas creio que neste caso o acréscimo de peso deste homem não foi uma obesidade qualquer mas antes sinónimo de expansão e abertura ao infinito. Quando a noite caía, a sua barriga refletia a abóbada celeste e no rosto tinha o pasmo do filósofo das origens ainda cheio de assombro, antes das questões emergentes, antes do discurso, dos sistemas e das correlações. Podemos mesmo dizer que esta foi a forma original de Lúcio amadurecer. Com isto, o tempo venceu a identidade. Este processo interior de Lúcio fez com que Lyra no início se sentisse confusa, um tanto perdida e desprotegida, mas aos poucos a recetividade nela também se fez notar. Quando o beijava os beijos sabiam-lhe a sal e maresia. Ao percorrer-lhe o corpo tinha a sensação de se estar a erguer ao alto cume das montanhas ou a ser puxada pela força avassaladora das cascatas. Quando deixou de sentir medo começou a experienciar um prazer sem limites, diferente de tudo que conhecera até então. E foi aí que teve uma das melhores experiências da sua vida, como se se sentisse una e múltipla como e com o universo. Ao tomar consciência de que tinha tanto e era tão afortunada, começou a convidar as suas amigas para partilharem com ela a mesma experiência excitante, avassaladora e desafiante. Tornou-se especialista num vinho quente com especiarias que brindava aos convidados e foi assim que a casa de Lúcio e de Lyra se tornou uma casa aberta ao mundo. Este foi o segundo grande ciclo das suas vidas, em que mais uma vez as paredes derrubaram desafiando ao limite o sentido de “proteção”, “aconchego” e “identidade”. Só que, neste caso concreto, não houve tragédia mas as naturais dores de um alongamento. As mulheres que passaram a frequentar a sua casa descalçavam-se à entrada, soltavam os cabelos, despiam-se muitas vezes e, de alguma forma reforçadas por aquele vinho, entravam em transe dando-se a uma infinidade de expressões numa dança pautada pelo compasso da natureza. Neste ponto podíamos talvez dizer mais coisas acerca destas mulheres do que do nosso personagem principal. Ainda mais quando o efeito do vinho se extinguia. Ao perder o estado de êxtase, a embriaguez, podíamos observar a tendência de cada uma delas para se apoderar de uma parte, de privatizar zonas, lutar pela parte que mais lhe convinha, destacar-se, mesmo estando tudo tão nu e aberto. Mas sobre Lúcio termina neste ponto o fio da história ou a total possibilidade para a mesma, visto que o luar, a alvorada, o mar, não têm história. São sempre cenário, ambiência, clima, por vezes metáforas e analogias que ilustram propósitos individuais ou coletivos. Apenas as figuras perecíveis que se erguem entre o céu e a terra no pano de fundo da natureza têm uma história ou são personagens de histórias com um início, um enredo e um fim.  

Verónica Louise

Oceano e a Mulher Sonho



Na infância passava horas à janela que se abria para o horizonte e ao entardecer, nos dias quentes e longos, a bola de fogo parecia estar à distância de uma correria para a poder alcançar e fazer rebolar por aí. Quando o verão perdia afirmação, as nuvens que se formavam no céu ao tocarem a imaginação fértil de Oceano ajudavam a erguer um mundo feito de personagens e enredos inventados. O tempo e os modos foram esculpindo alterações na figura do rapaz que tinha o tom de pele do lusco-fusco. Do homem em que se tornou permanece o brilho nos olhos, os lábios agora mais plenos a puxarem o beijo e o gosto de olhar pela janela como o ecrã cénico dos sonhos. O cenário mudara desde que casara com Mariama – uma mulher mestiça como ele, com o tom de pele mais claro e traços de rosto finos a contrastar com a cabeleira negra em carapinha, e um corpo sólido, com ancas acentuadas a tenderem para uma ondulação ligeira. O horizonte deixou de se mostrar nu e aberto; prédios cheios de janelas erguiam-se à sua frente formando uma textura urbana. Agora Oceano, em vez de inventar estórias com a matéria gasosa das nuvens, parecia ver um rosto em cada janela e, por vezes, ficava com a nítida impressão de que esses rostos o olhavam também. Há uma hora para tudo, a hora do tráfego e a hora dos espetáculos e dos filmes. A noite tudo silencia e esbate as linhas que separam e dividem. Intimista e discreta nas suas manifestações, anda em pés de veludo e escapa das expressões cruas que o dia denuncia. Com ela andam os sonhos e também os pesadelos e a luz do luar junta mais do que divide, mas nisso também confunde. Quando o dia acorda, os sonhos adormecem ou deixam de ser vistos e os atores esfumam-se, não deixando nem rasto atrás de si. Creio que o nosso personagem passou a perceber bem isto.


Das muitas janelas e vidas houve uma que prendeu particularmente a atenção de Oceano, ao ponto de o levar quase à obsessão , ao delírio. À hora em que se apagavam as luzes e os olhos se fechavam, ainda assim havia uma janela que permanecia com luz pela noite dentro. Através da mesma entrevia-se uma estranha mulher. Parecia manusear sabiamente a sombra e claridade e, ocultando-se, revelava-se e movia-se em fios de luz que a desenhavam esbelta, ondulante, serpentina…
Tudo começou numa noite em que o mundo já dormia e apenas aquela janela se mantinha iluminada. Um vulto feminino, uma luz difusa e um pedaço de cortinado vermelho preso num dos lados captaram logo a atenção do rapaz que deixara progressivamente todo o pudor e timidez e começara a olhar com frontalidade e vivo entusiasmo. E se tudo teve início com o vapor de uma chávena de chá movida por entre mãos delicadas numa espécie de contra-luz que dava recorte à figura − um ombro descoberto e cabelos longos, negros, a cair em cachoeira −, aos poucos a tendência foi-se intensificando tornando-se num espetáculo estonteante que logo se transformou num private show que incluía a nudez mais ou menos explícita e a dança envolvida num erotismo subtil e ousado. Esta sensação de viva irrealidade foi o suficiente para dar uma reviravolta na cabeça de Oceano. Não sei se as bailarinas são mesmo mulheres. Num certo sentido, parecem de outra espécie; mas, na verdade, aquela figura que com engenho, arte, ousadia e destreza deslizava à frente dos seus olhos no abismo da distância dava a sensação de habitar por momentos outra faixa da vida. E se no início havia o vivo entusiasmo de um espetador a observar um espetáculo digno de apreço, ainda que excitante, a partir de uma determinada altura este homem nada mais queria que ultrapassar a barreira da distância e do desconhecido e possuí-la nua, toda, plena e profundamente. Oceano deixou de aguentar a provocação, não queria mais o jogo, não nascera para viver amores platónicos. Gostava de aprofundar a experiência e para ele isso significava um ato físico de efeito semelhante à sensação concreta de alguém que engole muita água e se afoga. Não a ter assim deixava-o frustrado, embora tivesse presentes as experiências dececionantes que recorrentemente lhe sucediam com as mulheres, que nem sempre são o que aparentam.

 Por outro lado, Mariama andava adoentada. Uma doença rara que nem se percebia. Desfalecia mal o sol se extinguia, como um fantoche desativado. Adormecia num sono profundo e nada a fazia acordar. No seu sono era bela mas nem mesmo o beijo do marido a despertava. Ninguém percebia ao certo o que lhe estava a suceder, nem mesmo os médicos, embora fosse aconselhada a diversos programas de psicoterapia. Quando a luz era intensa, Mariama andava radiosa com o seu sorriso grande, um dos seus maiores dons mas também o seu esconderijo. Esta mulher sorria quando estava feliz; e quando estava triste também sorria. Dava-se ao mundo num sorriso e através do mesmo se fechava. Só um olhar perspicaz e atento poderia perceber as subtilezas e contradições do seu sorriso. Nos últimos tempos era assim: ou se vestia de sorriso ou de bela adormecida. Apenas dois modos. O desencontro devido a horários desiguais e o sono que dela se apoderava à hora em que poderiam estar juntos fez com que a relação perdesse dinâmica e fôlego. Apenas se encontravam nos finais de semana, embora partilhassem o mesmo teto e a mesma cama o resto da semana. Nesses dias, faziam amor mas já nada era como antes e Oceano, quando estava com ela, era trespassado por imagens bruscas da estranha mulher que aparecia à janela. Aos poucos foi passando a vê-la como uma boneca em cima de uma cama que com ele dormia sem reação nem iniciativa.
Durante o dia não havia vestígios da bailarina e nunca se via ninguém à janela. Dela, a vizinhança tinha apenas a imagem de uma estrangeira de uma beleza vaga e fugaz que passava num rasto aqui e ali sem se deter, como uma fagulha de fogo ou um clarão. Decidido a encontrá-la como pessoa real de carne e osso, depois de muitas horas de espera, houve um dia, já noite longa, em que a viu sair de casa. Envergava um casaco preto comprido e no jeito de caminhar parecia um felino. Mal sentiu que a estavam a seguir, acelerou o passo. O silêncio de fundo das ruas que se bifurcavam dava recorte ao som. Ele agarrou-a num braço, com convicção e ordenou-lhe, fitando-a nos olhos que quase cegavam: «Não fujas». Ela obedeceu, parecendo que se tornara líquida. O olhar de ambos tinha uma cintilação intensa . Quando a olhou nos lábios, teve a impressão do vermelho que jamais tivera antes, como se algo comunicasse com ele de forma avassaladora e ambos partilhavam uma postura cúmplice . Beijaram-se ainda levemente, como num prelúdio. Ali, colado ao corpo dela, fervilhante, estava prestes a desvelar o mistério. E ela, dentro daquele casaco, estava vestida como uma cortesã ainda que em traços sóbrios e notas de vermelho sobre predomínio do preto, o que o que a tornava ainda mais apetecível aos olhos deste homem que parecia estar a um passo da realização do seu sonho. Respiração próxima, lábios com lábios, corpo a corpo e a total nudez iminente. Um botão atrás de outro que se desaperta, uma pequena fita que com facilidade de desata, a brancura do seu corpo a aparecer cada vez mais em contraste com o tom mais escuro da pele que a envolvia. Apenas o rosto e o corpo falavam e nela nada era demasiado vulgar. Estava ali inteira, cheia de vida, com a respiração da chama. Mas foi nesta série de movimentos e acentuações iniciais que visavam ascender aos cumes que, de súbito, a mulher se esfuma, se extingue; a figura de carne e osso desaparece e os braços de Oceano abraçavam os seus próprios braços. No seu lugar caem pétalas de rosa da cor dos lábios e dos cortinados… e um perfume indescritível invadiu a rua. Fez-se sentir um bater de asas… Oceano ficou confuso, mas ainda cheio de vida. Nada de semelhante lhe tinha sucedido antes com uma mulher.

Chegou a casa como um bêbado que vê a vida na transversal e tudo confunde com tudo. Para sua surpresa, Mariama não se encontrava em casa e a imagem habitual daquele quarto mudara. A marca do seu corpo nos lençóis, causara-lhe nostalgia e, sem já nada perceber, acabou por adormecer vestido no lugar onde ficara o rasto leve.
No dia seguinte, Mariama quis ter uma conversa “séria” com ele. Verificou, perplexo, a sua expressão mais aberta e determinada e sem vestígios de sonolência. Estava, no entanto, de certa forma, nervosa quando lhe pediu o divórcio. Disse ter encontrado outro amor, um homem que percebera em profundidade todas as nuances do seu sorriso, capaz de beijos de príncipe que a arrancavam do sono pesado. Nesse dia discutiram e o diálogo tornara-se uma oportunidade de acusações mútuas. Também ele a acusou de falta de iniciativa para o surpreender, de sempre ter desvirtuado a dança, do seu marcado desagrado pelo vermelho e persistência nos tons pastel, mesmo sabendo que isso o excitava,  entre outras coisas.

Por vezes, depois do furor, fica a desolação de um fogo extinto. Foi isso que Oceano sentira. Divorciou-se de Mariama e as luzes da outra casa permaneceram fechadas. Nem o mais remoto vestígio da bailarina, mas a saudade invadia-o frequentemente. Por outro lado, Mariama abria-se para a vida como uma adolescente e teve mesmo uma inexplicável vontade de usar um verniz vermelho. Mas o seu novo namorado achava o tom demasiado vulgar; nunca gostara de lábios lambuzados nem vernizes . Ainda mais a mulher que fosse dele… Jamais gostaria de a ver com modos de vestir insinuantes e ares que fizessem lembrar as putas. Apreciava nas mulheres o rosto lavado e com o brilho inteligência.

 Oceano esqueceu Mariama com facilidade e passou a andar com muitas mulheres que seduzia com elogios, surpresas e promessas de amor eterno; mas em todas elas procurava a mulher que se desvanecera numa noite de mistérios. E se Lusana o impressionou com um vestido vermelho justo e decotado, Vera não lhe ficava atrás, com um batom de um vermelho pouco berrante em lábios sedutores e um vestido preto que a faziam ainda mais sexy.  Lygia, então, com aquele corpo escultural e os lábios ainda mais bonitos, um verniz vermelho a aparecer nos pés delicados e um decote arejado de onde uma renda irrompia a acompanhar a vida que explodia, concorria com vantagem com as anteriores e impelia-o a fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para a conquistar. Recorria a todas as técnicas e artimanhas para conquistar todas as mulheres cujo tom e perfume se aproximavam daquela memória e a conquista tornara-se uma das motivações da sua vida. Mas, depois de as levar a vias de facto, perdia o entusiasmo para relações sérias e inspiração para tantas surpresas e elogios. Não conseguia evitar sentir-se um tanto desencantado, como se o tom desvanecesse e o efeito quase heróico em simultâneo se extinguisse. E foi assim, depois de contínuas experiências contrárias à sua elevada expetativa e após ter-se apercebido de quanto fazia sofrer as mulheres a reclamarem o regresso, a exclusividade, a manutenção do amor , assim como esperavam o cumprimento das promessas , que aos poucos Oceano foi perdendo a obsessão pelo vermelho e passara a experimentar uma abertura e libertação no azul. Procurava o horizonte aberto longe do reboliço das cidades e da vida fragmentada. Saía frequentemente para praias desertas, onde se estendia de peito aberto a contemplar o céu livre e iluminado, sem nuvens, sem bruma, sem figuras de entretenimento onde o mar, as montanhas e as pedras eram uma presença incansável. Nisto começara a sentir uma estranha liberdade e uma felicidade sem suporte nem justificação…

A bailarina, essa não era bem uma mulher, talvez por isso não chegasse a perder a intensidade nem as ilusões. Dançava nos intervalos da vida por entre as portas entreabertas, equilibrava-se em fios finíssimos de luz e brincava com miragens e reflexos dando-se sempre a números novos. Aguentava pouco tempo a manifestação e a normalidade. Numas das suas últimas aventuras jantara com um homem como uma mulher de verdade, embora em tudo se parecesse com uma mulher de sonho: lindíssima, sensual, resplandecente e sem idade. Mas extinguira-se em miríades de bolhas no vinho adamado com que brindavam à vida num momento quente, quando o seu decote se abria atrevido, acompanhado de um sorriso que dizia o gozo que dava aquele roçar de pernas debaixo da mesa, com um pé que se libertara da sandália, para entrar no mesmo momento nos sonhos de Oceano, que a reconheceu como uma miragem, bruma, algo de irreal com pouca importância, sem porém deixar de apreciar a sua beleza, a perfeição das formas e a cadência dos gestos. E mesmo cheio de vastidão, de azul e a satisfação que lhe dava essa nova vida sem janelas nem portas, ainda assim, um lado de si parecia aspirar aprofundar mais a experiência com aquela figura que sempre brincara nos seus sonhos mas que nunca percebera ao certo onde era a sua verdadeira morada.