Álbum de Retratos

Invento-vos como sois (Bergson), mas o essencial de vós escapa aos enquadramentos.


(Imagem : Adama)

Lúcio



Lúcio é um homem branco. Sempre procurou afinar o seu tom com a mesma precisão e agudeza com que se afina um violino. O seu objetivo visava a transparência. A sua casa ( lar aconchegante) desmoronou após uma festa de anversário com cintilar de copos e sorrisos que em unissono brindavam  « à vida!» - e desde então  Lúcio percebra: pode percorrer o mundo sem sair do lugar, o universo é o seu aconchego, o saber tem na verdade sabor, o amor até pode prescindir do tesão e abraçar com loucura a razão. Questionar é viajar. Com o final trágico e inesperado da festa, Lúcio derramou lágrimas abundantes, mas de tão claro, as lágrimas transparentes na sua pele mal se notaram. Porém, no lado invisível, houve maremotos, sismos e vendavais. Já o sorriso que esboça quando está prestes a descortinar a verdade como qualquer coisa vasta e intangível – pressentida no olhar das coisas, denunciada numa pegada, numa estrela, pedra ou flor − ganha mais destaque. Ilumina-lhe o rosto de tal forma que parece um pássaro branco a rasgar em alvura os fumos negros da poluição das grandes metrópoles.

Toda a vida interior de Lúcio conflui para as mãos: cálidas, aladas, puríssimas, movendo-se numa cadência suave como quem tem tempo e vive sem pressa. Todos os outros aspetos da sua figura são de uma forma pouco lapidada. Foi engordando com o tempo, o cabelo em desalinho foi-se extinguindo e as roupas usa-as sem critérios e em camadas simplesmente para o protegerem do frio e assim poder estar confortável a assistir ao espectáculo fervilhante do universo. Os olhos irrompem diversas vezes em cintilações livres, libertando-se dos espartilhos da idade em lampejos de frescura e jovialidade.

Talvez por se ter tornado tão translúcido e introspectivo não ganhou um realce particular na sociedade apesar da sua inteligência acima da média. Nunca teve amigos aos molhos, mesmo sendo marcado por uma natureza prestável e calorosa. É também por este mesmo motivo que não há grandes histórias a contar sobre este personagem. As transformações que ocorriam a nível interior mostravam-se nos detalhes, nos passos que dava na linha reta à beira do Tejo. Sempre o conhecemos com Lyra, a mulher que o acompanha deste tenra idade e por quem se apaixonara por os seus olhos lhe parecerem música. Antes de Lyra sonhava com Kety, uma boneca antiga com uma espessa cabeleira, arrumada no baú do sótão, a quem nunca trocaram de vestido − o que até lhe conferia encanto − nem reagia entusiasticamente ao sorriso dele, mas que apesar da antiguidade ele renovava com viva imaginação. Com ela aprendeu a ver o amor humano como um fenómeno de projeção individual que nem sempre se molda ao nosso gesto nem acompanha a nossa velocidade. Lyra, ao contrário de Kety, é uma mulher de verdade. Daquele tipo de mulheres tão entrançadas na vida de um homem que mal a conseguimos ver na sua forma singular. Beleza simples, gestos discretos e naturais, inteligência discreta. Embora percorressem durante diversos anos o mesmo caminho nas margens do rio, a forma como estas duas figuras se foram posicionando no espaço sofreu alterações até desaparecerem de vista. Quando ainda transpiravam juventude, pedalavam de sorriso grande pois todos os fins de semana a família era festa e havia bolo quente em casa da mãe. Ela na sua bicicleta cor-de-rosa, os calções curtíssimos a destacar a figura esbelta e bem recortada e ele numa bicicleta azul com autocolantes de golfinhos e morcegos com óculos de sol, o ténis a abrir no lugar do polegar, como que a extravasar os limites e a contestar a vida material.



Passados alguns anos, o sorriso ficou menos efusivo e as bicicletas saíam com menos frequência até  se perderam de vista ficando o Tejo e as coisas grandes e abrangentes como a luz que brilha e se desvanece, a planura onde outros personagens talvez mais coloridos agora desfilam. Creio que a ausência neste lugar se prende com o facto de Lúcio ter atingido um grau de transparência tal que começou a sentir dificuldade em se ver ao espelho, deixando também de se ver refletido no rio, nas montanhas, nas pedras, assim como de obter as respostas que daí advinham. Entretanto também engordou demasiado, mas creio que neste caso o acréscimo de peso deste homem não foi uma obesidade qualquer mas antes sinónimo de expansão e abertura ao infinito. Quando a noite caía, a sua barriga refletia a abóbada celeste e no rosto tinha o pasmo do filósofo das origens ainda cheio de assombro, antes das questões emergentes, antes do discurso, dos sistemas e das correlações. Podemos mesmo dizer que esta foi a forma original de Lúcio amadurecer. Com isto, o tempo venceu a identidade. Este processo interior de Lúcio fez com que Lyra no início se sentisse confusa, um tanto perdida e desprotegida, mas aos poucos a recetividade nela também se fez notar. Quando o beijava os beijos sabiam-lhe a sal e maresia. Ao percorrer-lhe o corpo tinha a sensação de se estar a erguer ao alto cume das montanhas ou a ser puxada pela força avassaladora das cascatas. Quando deixou de sentir medo começou a experienciar um prazer sem limites, diferente de tudo que conhecera até então. E foi aí que teve uma das melhores experiências da sua vida, como se se sentisse una e múltipla como e com o universo. Ao tomar consciência de que tinha tanto e era tão afortunada, começou a convidar as suas amigas para partilharem com ela a mesma experiência excitante, avassaladora e desafiante. Tornou-se especialista num vinho quente com especiarias que brindava aos convidados e foi assim que a casa de Lúcio e de Lyra se tornou uma casa aberta ao mundo. Este foi o segundo grande ciclo das suas vidas, em que mais uma vez as paredes derrubaram desafiando ao limite o sentido de “proteção”, “aconchego” e “identidade”. Só que, neste caso concreto, não houve tragédia mas as naturais dores de um alongamento. As mulheres que passaram a frequentar a sua casa descalçavam-se à entrada, soltavam os cabelos, despiam-se muitas vezes e, de alguma forma reforçadas por aquele vinho, entravam em transe dando-se a uma infinidade de expressões numa dança pautada pelo compasso da natureza. Neste ponto podíamos talvez dizer mais coisas acerca destas mulheres do que do nosso personagem principal. Ainda mais quando o efeito do vinho se extinguia. Ao perder o estado de êxtase, a embriaguez, podíamos observar a tendência de cada uma delas para se apoderar de uma parte, de privatizar zonas, lutar pela parte que mais lhe convinha, destacar-se, mesmo estando tudo tão nu e aberto. Mas sobre Lúcio termina neste ponto o fio da história ou a total possibilidade para a mesma, visto que o luar, a alvorada, o mar, não têm história. São sempre cenário, ambiência, clima, por vezes metáforas e analogias que ilustram propósitos individuais ou coletivos. Apenas as figuras perecíveis que se erguem entre o céu e a terra no pano de fundo da natureza têm uma história ou são personagens de histórias com um início, um enredo e um fim.  

Verónica Louise