Meninas Crescidas #3
ANA MORAVIA
Há um momento em que não
nos reconhecemos. Em nós mesmas tornarmo-nos estrangeiras. Como se
nos tivessem cravado um brinco à nascença. Até morrer permanecemos
com ele. Ao redor da orelha toda a figura se desfigura. Restam - nos
vestígios ( falarei apenas à superficie?). Antes de uma nova fase –
limpa , assumida - ficamos entaladas entre portas ( passado /
presente ). Perdemos todo um horizonte de expectativas.
Chamavam-na Anica e sempre
a sentaram nas primeiras filas. Dava ares de princesa, sem grande
ostentação, desenhada a traços finos. Composta. De
uma irreverencia a sair pelas bainhas .Com as ânsias e frustrações
de toda a gente, quando olhava para trás parecia ver uma
aflição maior do que a dela. A miséria do mundo arranhava-lhe a
pele sensível mas à hora das refeições arrumava as lágrimas e
sentava-se à mesa com a maturidade que lhe era característica.
Anica não teve irmãos nem uma grande família. No seu mundo
passavam pessoas mais velhas.
Enchiam-na de gracinhas e afagos. Circundada por espaços vazios,
aprendera a imaginação de brincar sozinha. No bosque saltava
de clareira para clareira, fugia das horas em que o sol abrasava.
Depois havia as mãos. São o que são e muito mais: pássaros
alados, ondas, podendo mesmo tomar um jeito viscoso de réptil.
Quando as libertava, assistia ao nascimento da magia. Quando a luz
insidia na superfície das paredes caiadas de branco e o sol se
aproximava do mar, originando marcadas sombras, fazia com elas
figuras. Não sei ao certo se foi ao brincar ou por um qualquer
registo que trazia dentro de si mesma, que percebera os segredos do
breu e toda a dinâmica dos opostos que
moviam o mundo. Com o tempo descubrira que se
mergulhasse fundo no escuro, com coragem e de olhos bem abertos,
acendia-se uma paisagem clarissíma. Da noite fez uma aliada: intimidade,
segredo, brilho de estrelas. Por isso se vestia de preto deixando
escapar pérolas e realçando os brincos. Quando o cabelo branco
começou a ganhar terreno, pintou-o de preto emoldurando com uma
franja devidamente traçada o rosto alvo e esguio. Até que houve um
dia que a luz crua da realidade deixou de se submeter no escuro dos
tecidos e o jogo de
ocultamento e transparências
termina. Os
vestidos deixaram de servir. No mundo masculino tornara-se,
apesar do aumento de volume, mais invisível. De Anica passou a Dª
Ana e o seu reflexo era, para ela mesma, uma violência. Foi nessa
altura que se arrumou a um canto como uma marioneta de fios
emaranhos, fora de cena. A noite deixou de ter estrelas,
os brincos tornaram-se foscos. As pessoas mais velhas morriam.
Escureceu tanto que no limite acabou por renascer, de surpresa,com
um fulgurante cabelo branco assumido, uma versão de loira
amadurecida. Ao sair daquele canto, abriu, ao acaso uma pagina de um
livro : “ Aprendi com as primaveras a deixar-me cortar e a voltar
sempre inteira” Cecília Meireles). E foi a partir deste dia que
Ana Moravia renasceu. Passou a vestir roupas largas e mais
coloridas que deixavam circular o vento e flutuar as linhas do
corpo; o sorriso tornara-se despretensioso e livre , voltou a dar
lustro aos brincos e a mover-se por entre entre a luz e a
escuridão , agora com mais descrição e pericia, dando a maior importancia à entre
linha. Quando a morte ameaçou a segunda vida,
entregou-se como flor a flutuar num rio;elevou-se no céu uma revoada
de pássaros e “apenas deixou de ser vista”.
- Verónica Louise