Albino
é um homem com uma sensibilidade peculiar. Apercebeu-se há tempos,num casual
reflexo do seu rosto, do arrefecimento do sol. Na sua
postura aberta, na facilidade com que trinca conversas,vinga uma
natureza generosa e adaptável. Albino não procura o sentido da vida
“além das estrelas” nem se inclina demasiadamente para as
“arestas afiadas da vida”. A sua órbita de ação
insere-se neste espaço de diversidades. Apesar da morte que
espreitar nos olhos de todas as coisas, ainda se assemelha a um
parque de diversões cheio de contrastes, oscilações e o perpétuo
baloiçar entre o “sim” e o “não” que reforçam a emoção e
sensação de se estar vivo. A comunicação, para ele, é semelhante
a um jogo da bola. É capaz de estar um longo período de tempo nesta
atividade de agarrar e passar a bola que vai andando de mão em mão.
Na verdade, Albino tem os bolsos cheios de coisas giras e de lugares
por explorar assinalados no mapa. Ganhariam ainda mais sentido quando
partilhados com a pessoa amada ou uma família. Engenhoso e de uma
curiosidade aguçada,mal repara na gama tonal de um tom. Procura
acentuar os contrastes, percorre dinamicamente todas as cores do
arco-íris e até lamenta não haver mais cores para variar.
Este
homem sempre teve fascínio por comboios e maquinarias. Um dia pôs
mãos à obra e construiu uma linha férrea em miniatura na sala −
mesmo junto ao teto − com diversas carruagens, túneis, linhas que
se cruzam, iluminação noturna e som a valer. Tudo comandado à
distância. Finalizou a obra e ficou satisfeito. Imaginou o olhar
radioso de uma criança num rosto que se abre num sorriso fácil com
estas coisas que rolam, buzinam e acendem as luzes. Mas com o tempo
os comboios começaram a ganhar demasiado pó e a enferrujar, pois
foram deixando de ser novidade para ele por falta de os mostrar como
novidade a alguém.
Num
outro dia, acordou entusiasmado com a ideia de fazer uma festa em
casa. Mesmo antes de enviar os convites, começou a preparar um
jantar com os melhores vinhos e as mais finas iguarias. Esmerou-se na
composição das mesas e optou por um tipo de iluminação difusa e
aveludada que facilitasse a união e o romantismo. Barbeou-se e
vestiu uma roupa nova sem descurar o sentido prático que lhe é
característico. Fez a cama de lavado, selecionou cuidadosamente as
músicas e até imaginou coreografias fáceis de salsa para animar os
amigos. E viu uma mulher sobressair naquela noite: de olhos cor de
mel e pele leitosa a trespassá-lo com um olhar sinuoso e
simultaneamente desviante num subtil jogo de agarrar e largar e
aqueles movimentos demorados mas esquivos que fomentam uma espécie
de sede e uma euforia secreta. No fundo, pensava para si mesmo que
não era demasiado exigente para com a vida. Vendo bem o que
procurava era uma mulher humana, real: uma senhora, uma companheira.
Não precisava ser um estereótipo de beleza exata nem ter a técnica
afiada de uma cortesã −apesar de todas essas coisas naturalmente o
entusiasmarem (muito mais do que acreditava até a um dado momento).
Mas esta mulher não apareceu naquela noite. Aliás, ninguém
apareceu porque foram convidados à última hora e já tinham
compromissos. Albino acabou por adormecer no sofá com o televisor
ligado e os candeeiros acesos até ao romper do dia. Andou mais de
uma semana a comer os restos da festa que não houve. Partilhou com
os colegas de trabalho e levou bolo de chocolate à rececionista de
pele escura que lhe devolveu um sorriso grande de batom vermelho
(pena aquele género não o entusiasmar grandemente!)
Albino
vive agora com o Petit, um periquito azul que anda às voltas na
casa, voa para cima da cabeça e dos ombros dele, rouba-lhe os
fios de esparguete às refeições e anda de um lado para o outro à
frente do televisor quando o vê demasiado concentrado nos filmes.
Dá-lhe beijos nos lábios quando este lhe ajusta a boca em jeito de
assobio, de forma a moldar-se ao seu bico − o que daria,
certamente, uma selfy largamente apreciada nas redes
sociais. Vive também com Nancy, a cadela branca um pouco felpuda que
encontrou abandonada à borda da estrada num mês de agosto e que dá
voltas de contente quando ao final da tarde sente o rolar da
fechadura. Para além destes dois amigos, temos ainda os matizados
peixes cheios de reflexos luminosos a viver num aquário − o que
encontrou mais semelhante ao oceano. Apesar desta vida que o
circunda, quando ao fim de um dia de trabalho entra em casa, sente
que alguma coisa falta. Uma presença mais humana, talvez, com quem
pudesse partilhar o pão, o sorriso e as lágrimas; que emitisse
palavras e sorrisos e chorasse da mesma maneira que ele. A solidão
poderia ter-lhe dado uma maior sensibilidade para apreciar os
detalhes da vida mas esta caraterística não encontra nele um
terreno fértil. Andar em frente e dar saltos para cima, preencher
todos os espaços em branco, isso, sim, é para ele tão
natural como para o homem civilizado tomar banho todos os dias.
Enquanto espera que a vida lhe traga os seus anseios, ao final da
tarde, nos dias de semana, lá está ele no jogo da bola que é o
facebook onde já tem 2373 amigos e muitos, muitos gestos
de atenção e apreço − o que em parte já serve de consolo.
Por vezes, isto origina um vazio ainda maior pois não faz correr,
transpirar e nem desenvolve os músculos. Mas Albino continua com
os bolsos cheios de coisas giras: o goso pela comunicação, o
engenho, uma certa capacidade de responder de forma imediata à vida
e nela improvisar respostas sempre novas. Características que fariam
dele, certamente, um pai brilhante e um marido fascinante. Algumas
destas competências partilha-as alegremente com os amigos e amigas;
outras necessitariam talvez de um tipo de iluminação e um ambiente
mais intimista para se revelarem plenamente. Estas últimas continuam
guardadas para a pessoa “especial” que, à semelhança do
rei Sebastião, permanece oculta na bruma à espera do dia em que uma
luz mais incidente a revele.
-Verónica Louise