No
início da primavera, uma folha desprende-se ainda verde da árvore.
Naquele momento súbito e inesperado, não sabia se rir se chorar.
Ficou atordoada, perdida. O vento nesta época não se sente
particularmente inclinado para dançar com as folhas, nem estas têm
leveza suficiente para a dança. Anda envolvido com as flores,
mareado na diversidade de cores e perfumes. Não se destaca
particularmente −é apenas uma fragrância. Só quando as
folhas ganham desprendimento e uma dourada leveza − algumas
pintam-se de um laranja avermelhado de aparência um tanto
fogosa − é que estão preparadas para a dança entregando-se
airosamente nos seus braços e ao som de uma luz suave e lânguida
iniciam com ele um bailado. Só nesta altura é que o vento se
destaca conduzindo-as a seu bel-prazer. Depois de tantos rodopios e
giros diversos, as folhas acabam exaustas, feitas húmus que
alimentará outra primavera por vir. Mas o vento nunca pára nem se
detém. Continua depois a sua ronda pelo inverno fora,cada vez mais
afiado e independente, a correr tantas vezes em fúria e assobios
loucos. Leva sem freio todas as coisas pela frente até esbarrar mais
uma vez na estação do perfume e das flores que com tamanha sedução
o apazigua e silencia. E assim, mudo mas de
alma inteira, volta a exibir a primavera e, destacando-lhe o perfume
que espalha em redor, coloca-se em segundo plano. Precisamente por
ter caído nesta época é que a pequena folha correu o risco
de morrer antes de tempo sem verdadeiramente viver o seu potencial.
Um
dia, um rapaz, ao passar por ali com uma câmara fotográfica de
turista, reparou nela e ainda pensou em devolvê-la à árvore, mas
depois de se desprender nenhuma folha retorna, pelo que só conseguiu
mesmo a fotografia de um pormenor. Houve, porém, uma menina de
cabelo comprido, solto, fino,airosa e esguia, que ao andar por
aqueles lados a saltitar, movida por uma imaginação que era só
dela, espontaneamente a colocou na palma das mãos e a levou
com cuidado para casa. Deixou-a num copo de água − não fosse por
lá perder todas as hipóteses de vida − e foi olhando atenta dia e
noite. Com o tremendo potencial que a folha tinha, constatou com
surpresa que ganhou raízes e na altura certa lançou-a à terra com
a mesma delicadeza e atenção nos gestos. A planta lutou tanto, mas
tanto, para sobreviver que chegou mesmo a tornar-se uma árvore
sólida e frondosa cheia de folhas e flores. Ainda hoje é uma árvore
resistente que dá muito de si − conhece os segredos dos amantes, a
conversa das mulheres , de todos os que se detêm na sua sombra; sabe
de cor os movimentos dos astros e conhece os segredos dos
mundos ocultos que se escondem nas suas raízes. Na primavera é
bonita, mas no outono é um espetáculo maravilhoso, um tanto
nostálgico, ver as folhas iniciarem a partir dela a sua dança à
luz do entardecer. Apesar de generosa e de ter adquirido a sabedoria,
a serenidade e a capacidade de sobreviver firme aos temporais e à
dureza do inverno, a observar os fenómenos sem se destabilizar, há
quem diga que nos dias de lua cheia esta árvore secretamente chora
por uma qualquer nostalgia de nunca ter podido ser folha bailarina,
vulnerável e dançar com o vento dando-se a uma entrega e morte
fáceis − mesmo sabendo que raiz, ramos, folhas e flores são
afinal diferentes traços com que se desenha uma árvore.
(Foi
esta a história que vi nos olhos de Amadis, um negro;num dia
sublime – inesperado − em que o sol se misturava com chuva e
trovões. Num final de tarde, ainda verão, na serra de Sintra quando
a terra − faminta daquela água que caía sem freio dos céus −
exibia no verde viçoso uma inigualável glória.
Dias
depois, Amadis adoeceu. Com a o nevoeiro espesso que se impôs, perdi
o acesso ao seu olhar terno, fundo...
Verónica Louise
Verónica Louise