Álbum de Retratos
Invento-vos como sois (Bergson), mas o essencial de vós escapa aos enquadramentos.
(Imagem : Adama)
ALFA, O RAPAZ QUE A PEDALAR FAZ INVEJA AOS PÁSSAROs
O Homem Lento
Carregava o fardo
pesado do tempo. Lentamente, muito lentamente. Após uns poucos passos, estava de braços cruzados
apoiados no parapeito do piso superior de Centro Comercial. Lá em
baixo agitava-se a vida. Só via coxos e velhos. Foi isso
que ele me disse quando eu — triste de não o puder ajudar a
transportar tanto peso — lhe dei uma palmada no ombro e o
abordei de frente.
(
Baixinho, houve lágrimas. Muito baixinho)
O Homem Invisível
Mesmo nos domingos
varria as folhas da calçada como quem vive sem pressa. Para as
recolher, bastava um arranhão ligeiro no solo com o ancinho. Prosseguia
naquele modo pelo passeio acima. Levava um macacão verde colado à pele
escura. Talvez por não assinar os gestos e ter aprendido a
pousar leve com as folhas que não deixam traço nem rasto, ninguém dele se apercebia.
Pedro #2
No n.º22 r/c esq. de
uma rua como tantas ruas, na porta de entrada, um letreiro discreto
ao centro: “Família Fonseca” . Dentro da casa ainda permanece um
rapaz em frente a um monitor. Verte mundos através dos dedos longos,
cálidos. Correm pelas teclas sem tropeços. Depois param numa
espécie de leveza contemplativa. Nas divisões mudas irrompem as
fotografias, emolduradas e sempre limpas, da família. Rastos de luz extinta.
Paulo Verona
1.
Paulo
Verona apesar de morto continua vivo – mais que tudo no coração
de muitas mulheres que veem naquela estátua alento e inspiração
acrescida. «Não há nascimento nem morte» – ouvimo-lo muitas
vezes. Para muitos, apenas uma afirmação digna de respeito. Agora
as mulheres, com o coração ao rubro – nos olhos, nos gestos –,
apreendem o sentido das palavras a partir de uma visão interior,
característica de uma sensibilidade fina. Orion – uma rapariga de longos cabelos, perfeita metáfora do vento –
desde tenra idade previu uma estátua de honra e de mérito. Não
dele, mas dela – só por ser sua filha. Quanto agora passa pela
representação do pai, o rosto vacila entre as lágrimas e uma
abertura cristalina. E o passado atopela-a: as brincadeiras
à beira-mar, as estórias intermináveis, um tanto surreais, onde a
loucura e o amor eram os grandes protagonistas num humor que os fazia
morrer de riso. O filho – um rapaz com a postura nobre de um
cavaleiro dos tempos idos e uma sensibilidade líquida que vence a
armadura –, mesmo pequeno, tinha que impor ordem naquilo: «Já
chega, pai. Agora já chega.» E adormeciam, tantas vezes com a roupa
que traziam, enrolados uns nos outros, exaustos e felizes como atores
esvaziados de cena. Era assim que Verona agitava a mundo, o virava do
avesso, naquele Carnaval em
família com os seus dois filhos e as mulheres que se sucediam.
Depois voltava ao alinhamento reto de professor catedrático, mais
tarde presidente, onde só dava para ver uma seriedade digna de
respeito suportada na solenidade de um rosto que mal se movia. Também
por isto parece vivo. Mas Verona não fora só uma pessoa na linha. O
homem a quem alguns chamaram Mestre – constantemente convocado para
ocupar cargos de chefia, parecendo colecionar títulos, forrar
prateleiras de livros e encher páginas de currículo – tinha a sua
loucura secreta: havia dias em que deambulava
nas ruas à noite, dava pontapés nos postes e virava bidões do
lixo; escrevia frases nas paredes, dormia nas ruas ao lado dos
sem-abrigo, repetia bem alto «Quero ver Lisboa a arder!». Depois
imaginava um homem e uma mulher num amplexo amoroso reemergirem entre
as chamas num amor maior do que o mundo. A verdade é que ninguém
lhe conhecia estas facetas e, por mais que gritasse nas ruas da
capital – «Quero ver Lisboa a
arder!» –, as pessoas não acordavam nem vinham à janela.
Mas a morte a Paulo Verona nunca lhe causou medo. Era uma experiência
que integrava no quotidiano. Ainda me lembro quando saía fora do
corpo e ficava assim mesmo, a deambular por mundos imaginários,
parecendo deixar a figura programada em jeito de concordância
cordial com conversas aborrecidas («sim», «pois», «compreendo»).
A contrastar, ganhava nova vida ao falar para as multidões. Também
por isto parece vivo. Quem seria o artista que conseguiu expressar em
linhas tão realistas a leveza do seu gesto de mãos, quando citava e
recitava os sábios e
os poetas, o rosto fechado, o sorriso velado, o olhar para
dentro? «Ia jurar que vi o meu pai sorrir!» – confessava às
paredes Orion. Corria um burburinho entre mulheres que também diziam
ter visões – alucinações puras – que alimentavam o mito. O
mais estranho era que os homens nada viam. A não ser o seu filho.
Esfregou os olhos, abanou a cabeça e correu a procurar uma
explicação científica ao ter a impressão de ver o rosto da
estátua do seu progenitor encher-se de ternura. Os homens da capital
tinham, para com o homem que deu voz aos animais
e atenção aos loucos mais desfavorecidos, respeito e admiração enquanto
vivo. Receberam com agrado a estátua, ninguém exigiu
grandes burocracias, mas, por estranho que pareça,
começaram a desesperar-se com o alvoroço feminino. Houve mesmo um
homem que, numa noite, ao ver a mulher tão sensual como jamais a
vira, dançar ao redor da figura ao ponto de mostrar os
seios num transe incomum, pegou, desesperado, numa marreta com
a firme convicção de transformar a escultura em pedacinhos. O que valeu
foi ter aparecido casualmente
o filho de Verona com amigos, evitando a concretização do
objetivo. As mulheres tentaram tornar-se mais discretas para
dispersar as atenções e acalmar os ânimos. «Vejamo-lo nos nossos
maridos» – sugeria Gilda, recorrendo a ideias expostas num
livro que o professor escrevera sobre o uno primordial e o sabor
único. Eis a mulher que se tornara uma espécie de porta-voz de um
clube de fãs com tendências eróticas e místicas,
citando-o com frequência. Quanto à minha pessoa, o simples
facto de andar com uma câmara tem-me levado a observar as
reações humanas com alguma atenção, dando-me permissão para
entrar e sair à vontade nas portas principais e passar
nas travessas. Como tal, facilmente penetrava no círculo. Mesmo
conhecendo desde sempre o fenómeno e
ter privado de perto com Paulo Verona, dava por mim surpresa.
Aconteceu estar a fotografar a estátua ao raiar do dia, por pedido
de Gilda. Precisavam de fotografias apelativas, cuidadas, para
o grupo e até eu tive a sensação de ver a estátua prestes a
desmanchar-se de riso! Aquele riso, como vi tantas vezes em vida,
perante a tragicomédia da existência.
E comecei a rir sem freio, como se fôssemos cúmplices e
não estivesse ali sozinha. Tendo-me desconcentrado tanto, adiei
as fotografias. Ria por dois motivos: porque tomei consciência de
toda aquela loucura, alucinação febril, e porque me vi igualmente
tonta. Mas, no meu caso, entendia-se. Eu nunca fui muito presa ao
concreto e tenho por hábito reinventar o mundo. Depois de tanto rir,
passei ao outro extremo: comecei a chorar a sério. Tive saudades
daquele amigo...
2.
Sempre houve uma nota de mistério na vida de Paulo Verona (em parte, isso atribuía-se à expressão. O seu rosto era ausente da atmosfera que emana das personalidades mais mediáticas. O seu olhar ardia para dentro. Exteriormente, economizava expressões. Ainda assim, tocava as multidões e deixava um fio de ternura no interlocutor). As circunstâncias da sua morte não foram exceção. A notícia teve o seu momento solene na voz de Sofia Damas (cabe-me aqui fazer uma referência a esta mulher. Poderíamos dizer que foi a sua última e mais importante amante – no sentido genuíno que o termo pode compreender – para aquele que tinha o "casamento" e o "impossível" como as mais secretas aspirações. Este amor ganhou toda a intensa carga de significado que habitualmente se atribuiu ao primeiro. Sofia não era só uma mulher apelativa do ponto de vista físico. Revelou também uma inteligência fora do comum. Resolveu, de um modo admirável, este binómio aparentemente inconciliável. E triunfou sempre pelo lado do amor apaixonado. Essa energia que eleva o gesto a uma dimensão heróica, sem a qual aquele que foi seu marido não podia criar. No primeiro momento em que os olhos de Paulo tocaram o verde dos de Sofia, deu-se um fenómeno que não tem significado nos dicionários. Não lhe restavam dúvidas: aquela sempre fora, deste um tempo anterior ao tempo, a sua mulher. Quis logo fundir-se com esse absoluto. Casaram. Percorreram as diferentes tradições religiosas. Disseram sempre “sim” em muitas línguas e credos e passaram mais de uma vez por aquele momento tocante de arrepiar a pele a fazer bailar as lágrimas. Após três anos, divorciaram-se para se amarem melhor. Os casamentos foram anunciados a letras gordas e o divórcio comentado com algum pesar. Quando Sofia sentiu uma espécie de arrefecimento do amor heróico, quis divorciar-se. Passou para o plano do impossível e tornou-se inspiração pura, loucura declara, interdito desconcertante. Se não tivesse de respeitar o tempo de um conto, podia relatar a saga desta paixão com algum pormenor. Seja como for, quando anunciou a sua morte, estavam divorciados. Num certo sentido, mais casados do que nunca. A imprensa sempre revela o lado mais superficial) com direito a um longo tempo de antena onde o silêncio devorou as palavras e reforçou os olhares. Também eu fui apanhada de surpresa. Cheguei a ficar indignada com o ar fresco – parecia feliz – de Sofia Damas ao relatar o sucedido. Vinha com um vestido raiado da cor dos olhos, alças e cair leve. Nada por dentro dele interrompia a respiração natural da pele. Faziam-se notar, ligeiramente, os bicos dos seios. A sua vocação natural para a beleza dispensava qualquer reforço artificial. O cabelo castanho claro, pouco abaixo dos ombros, também tinha um cair natural. Sofia dizia que Paulo Verona partiu em paz na Índia e as suas cinzas foram lançadas no rio Ganges. Apanhou a população desprevenida e apreensiva por não terem nem o corpo para lhe prestar a última homenagem... Depois, Sofia pediu alegria porque ele estava vivo no coração de cada um, na imortalidade dos livros, na obra a continuar. Passados quarenta e nove dias, pela calada da noite, na esplanada da Graça, em frente à igreja, ergueu-se a estátua. O Tejo em frente e a cidade das sete colinas estendida por baixo do céu. Desconhece-se o autor daquele realismo e riqueza de pormenores absolutamente genial.
3.
Passaram
três anos. Quase
impercetíveis.
As chuvas, os ventos, as modas não apagaram a memória nem refrearam
o entusiasmo. A vida reinventava-se. É claro que o fenómeno se
tornou mote de artigos e debates, críticas sarcásticas, objeto de
investigação sobre comportamentos. Paulo Verona ganhara uma espécie
de imortalidade. À volta da estátua encontravam-se
poemas, citações, vestígios de
roupa feminina, bebidas e perfumes exóticos... E Gilda prosseguia de
alma grande. Deixara de ter depressões e exibia um potencial
insuspeitado até então. Continuava a citá-lo. O
círculo alargava. Algumas mulheres dançavam, cantavam,
declamavam poesia, encontravam significado em tudo. Nos
intervalos da vida eu observava. Nas horas
que desfaziam o sol no horizonte, o passado chegava-me como uma
lufada de pólen. Voltava
a rever o amigo naquelas
mesas numa relação apaixonada com os livros, a
sublinhar passagens a cores
de fogo: Nietzsche, Cioran, Pessoa, Pascoes, Sampaio Bruno, Eckart,
Chögyam
Trungpa, Nagarjuna...
Os livros sempre foram os seus amigos de jornada (a visão
panorâmica intercetava a paisagem humana, a brisa fazia flutuar
os vestidos e os cabelos das mulheres e trazia o coração à flor da
pele numa entrega e abertura de lágrimas).
Às vezes sentia-me pouco séria, já tudo me parecia uma música
batida. Eram demasiadas manifestações e emoções. Quase sempre
adivinhava o gesto que vinha a seguir. Até que comecei a reparar
numa jovem mulher diferente. Ninguém lhe dava
importância. Era difícil expressar-se, movia-se com lentidão num
corpo um tanto amorfo. Tinha uma doença que habitualmente se designa
por Síndrome
de Down, creio.
Cantava com frequência (desafinada. A dicção era pouco
límpida). Algumas raparigas olhavam-na de
esguelha, outras esforçavam-se por a aceitar com ares
compassivos. Não era levada muito a sério por ninguém. Passei
a observar Mira com mais atenção e assisti a profundas
mudanças de comportamento para com a mesma. Mira
passava ali muitas horas. À força de tanto vibrar, imaginava-se,
certamente, mais fluída do que
a imagem que exteriorizava quando
dançava. Talvez fosse benéfico não
ter total consciência das suas aptidões para o canto e assim
continuar a "espantar" a tristeza. A expressão do seu
rosto era sempre de boca aberta; o cabelo, com franja,
escorrido, abaixo das orelhas, tinha pouco volume e colava-se à
cabeça. Ainda assim, demonstrava inteligência e
vontade de se superar. Gilda
ganhara para com ela uma simpatia verdadeira. Depois de umas
passagens de textos de Paulo Verona sobre um modo de amor que a todos
inclui, começaram a aceitar as diferenças. Um dia, a jovem mulher
chamou Gilda à parte e, meio rubra, com os olhos a saltar ora para
o interlocutor à sua frente, ora
para o chão, pediu-lhe para a ajudar a realizar um sonho: beijara a
estátua. Gilda abanou a cabeça e, entre sorrisos, disse: «Mas
como, menina!? As estátuas e as fotografias não se beijam nem o
arco-íris se
toca. Iluminam-nos a vida, inspiram-nos, mas
beijar, beijar... É mesmo
pedra que tu queres beijar!? Além disso podes desequilibrar-te...».
A rapariga que vira tantas vezes o seu entusiasmo morrer,
nada concorrida como mulher, choramingou. A outra olhou-a nos
olhos. Calou o rosto. Elevou o olhar para a estátua («Afinal, és
pedra. Não tens existência real.
Nunca te poderemos sentir como quem põe a mão no fogo e se queima»)
e logo o deixou cair no chão. Depois
de um longo momento de silêncio, consentiu a loucura.
Iria ajudar a amiga a
aceder aos lábios da estátua...
4.
Já
a noite ia longa quando Gilda estacionou o carro no Miradouro da
Graça. A luz prateada de uma grande lua espalhava-se na cidade. O
mesmo brilho alagava os olhos de Mira. Gilda tinha o coração em
sobressalto, prestes a cair-lhe aos pés ao ver aquela criatura
frágil, de passo incerto, subir os degraus do sonho,
resoluta, apesar das limitações que todos
lhe conhecíamos. Gilda
roía a unha do dedo indicador. Esquecia a compostura. Quando a
rapariga apoiou a sua mão numa das mãos da estátua e atingiu
a plataforma mais estável, finalmente respirou. A sombra
do pensamento racional, difícil de
evitar, ameaçava o sentido da sua vida nos últimos tempos.
Mesmo sabendo do seu contributo para criar situações como esta.
Mira olhou de contente para baixo e acenou com a mão. Depois,
extasiada, ficou ali num pasmo sem igual. O ensaio do beijo demorava.
Aquele encantamento, quase constrangedor, começara a impacientar
Gilda («Isto
já é demais!»). «Mira, estás bem?» Não respondia. Ficara
pasmada. E não era para menos, visto que não estava perante
a representação da
vida. Tocara o milagre. Esta história pode até parecer ter
semelhanças com a da Bela Adormecida. Neste caso, foi no beijo de
uma princesa insuspeitada que Paulo Verona descera, ficando provado
que estava vivo. Contemplou
durante três anos a fio o céu, o desfile do mundo. A fome e o frio
não o derrubaram. Atingira um admirável domínio da
mente e do corpo (mas seria o amor que –
ainda –
o desconcertou!?). Ele era uma estátua viva. Mais do que
uma estátua viva:
era um yogui altamente
realizado. Iria de imediato para o Guinness
deixando
o mundo boquiaberto (enquanto isto, Sofia Damas, na sua despedida de
solteira, fazia um brinde à liberdade, essa coisa imensa, e começou
a dançar descalça em cima da mesa de um bar de estilo rústico.
A alça do vestido deslizava deixando quase escapar um
seio. Os movimentos do corpo nasciam na mesma progressão do alaúde
de um homem oriundo do norte de África que ali entrara autorizado a
pedir moedas aos clientes que se deixassem impressionar com
a sua arte. Os olhares masculinos devoravam Sofia; o estrangeiro
afinara através dela o ímpeto e
o gerente, também ele fascinado, consentia. Caíram muitas
moedas e notas para a mulher e o desconhecido, mas a bailarina deixou-as
com o músico, enquanto as amigas aplaudiam encantadas aquele rasgo
de inspiração inesperado. Sofia, a única que
desde sempre conhecera o segredo de Paulo Verona, fê-lo em
jeito de celebração. Entre ambos nunca houve longe nem distância).
5.
Como
o leitor já deve ter percebido, desta vez o impacto de tão insólito
acontecimento fora sem precedentes. A vida de Verona voltou a fazer
correr tinta. Formaram-se grupos de investigação, abundavam
colóquios e conferências que abordavam as questões do cérebro, o
controlo da mente e do corpo; proliferou o comércio de acessórios e
materiais para estátuas e, embora muitos aspirassem a tão
prodigioso estado, faltava-lhes a persistência e a disciplina de
longas horas de treino, condição imprescindível para chegar ao
ponto em que a imobilidade se tornava paz e liberdade. Paulo dava
entrevistas, escrevia artigos sobre o tema, abriu uma escola para as
pessoas interessadas em comprometer-se de uma forma mais séria.
Lisboa atraiu mais turismo. Por todos os lados se erguia uma estátua
de maior ou menor duração. Com isto, Gilda, surpreendentemente,
entristecia. Aos olhos desta mulher, o professor, apesar de vivo,
parecia morto. Ela não o reconhecia. E claro que estava diferente:
mais jovem; ria e sorria com facilidade. Perdera a pose grave,
vestia-se de um modo mais descontraído, ficava nas fotografias com
uma abertura contagiante... Embora ajudasse a formar estátuas vivas,
depois de três anos de imobilidade e silêncio só tinha vontade de
dançar. Mantinha, para com a sua mulher que virara uma espécie de heroína,
um olhar atento. Lia agora menos. Viamo-lo frequentemente com o seu
gato metade branco, metade preto –
Eusébio. Gilda vira o seu empenho de três anos cair e voltara a
entrar em depressão, chegando mesmo a dizer a Verona, a soluçar,
com o rosto encharcados de lágrimas, que não queria ser estátua.
Não sentia esse apelo dentro dela. Paulo, a contrastar, lançou-lhe
um grande e terno sorriso: «Amiga!, nem todos temos que ser estátuas
vivas. Nada está perdido. Com a experiência que acumulaste, porque
não escreves uma obra –
“O pensar no feminino”?» A rapariga enxugou as lágrimas e
iniciou na sua vida um novo ciclo: tornou-se uma escritora
bem-sucedida com esse primeiro livro prefaciado e diversas vezes citado por
Paulo Verona. Foi a partir daí que retomou o rumo da sua vida.
6.
Com
o tempo, deixei de ir com tanta frequência ao Miradouro da Graça.
Aquela zona ficou mais silenciada. Continuava a fazer grandes
caminhadas pela capital. Percorrer a cidade é como ler um poema.
Ainda mais quando a pressa dos dias abranda e as sombras se distendem
na luz dourada. As estátuas tornavam-se uma presença um tanto
familiar. Animavam a cidade. Por vezes, olhava-as fixamente nos olhos
tentando perceber o grau de realismo e seriedade das mesmas. Nalgumas
ainda se sentia agitação interna. Algumas representavam figuras histórias, outras absolutamente
peculiares e contemporâneas; havia-as muito simples, despojadas de
ornamentos. Era frequente ver adolescentes em jeito de gozo com as
mesmas. Faziam-lhe cócegas, depois punham-se com caretas ao lado delas e saía uma selfie.
Nos fins de semana, viam-se muitos no Largo do Martim Moniz a fazer
pinos, apoiados na ponta de um pé ou só com uma mão no chão a
medir quanto tempo aguentavam sem se mexerem. Depois desmoronavam a
rir no tempo deles. Subi do largo Camões ao Jardim do Príncipe
Real. Nesse dia não levava câmara. Resistia a comprar um
smartphone,
mas fui assaltada por uma imagem. Vi Paulo Verona e Sofia Damas num
banco de jardim. Os cabelos dela esvoaçavam na brisa outonal, o
vestido tinha uma transparência luminosa semelhante à luz dos
olhos. Paulo quase sorria. A vida, quando é imensa, não tem
palavras, dispensa gestos berrantes. Fiquei por momentos pasmada ( já
Diane Arbus dizia que as suas melhores fotografias foram as que não
chegou a concretizar). De súbito, relembrei que tinha que apressar o
passo. Faltavam vinte minutos para dar o antibiótico a Malu (a
cadela). Atravessei a estrada. Mal pus o pé no passeio recebo um
telefonema de Paulo Verona. Convidava-me para um jantar comemorativo
dos 28 anos de Mira. Do lado de lá ouvia-se o tilintar de louças e
outros ruídos domésticos. «Mas, Paulo...». Parece que não havia
contexto nem clima para acabar a frase. Virei-me para trás. Uma
enorme fila de trânsito vedou-me a visão. Festejavam mais uma
vitória da Selecção Nacional com balbúrdia e alarido. Das janelas
saltavam expressões, choviam buzinadelas e até dos carros saíam.
Também eu abanei a cabeça, esfreguei os olhos, abri-os e fechei-os.
Quando cheguei a casa tomei um duche frio. «Ía jurar que vi Paulo
Verona no transe contemplativo de um momento, no jardim do Príncipe
Real com Sofia Damas.»
Verónica Louise
Verónica Louise
Lúcio
Lúcio
é um homem branco. Sempre procurou afinar o seu tom com a mesma
precisão e agudeza com que se afina um violino. O seu objetivo
visava a transparência. A sua casa ( lar aconchegante) desmoronou após uma festa de anversário com cintilar de copos e sorrisos que em unissono brindavam « à vida!» - e desde então Lúcio percebra: pode percorrer o mundo sem sair do lugar, o
universo é o seu aconchego, o saber tem na verdade sabor, o amor até
pode prescindir do tesão e abraçar com loucura a razão. Questionar é viajar. Com o final trágico e inesperado da
festa, Lúcio derramou lágrimas abundantes, mas de tão claro, as
lágrimas transparentes na sua pele mal se notaram. Porém, no lado
invisível, houve maremotos, sismos e vendavais. Já o sorriso que
esboça quando está prestes a descortinar a verdade como qualquer
coisa vasta e intangível – pressentida no olhar das coisas, denunciada numa pegada, numa estrela, pedra ou flor − ganha mais
destaque. Ilumina-lhe o rosto de tal forma que parece um pássaro
branco a rasgar em alvura os fumos negros da poluição das grandes
metrópoles.
Toda
a vida interior de Lúcio conflui para as mãos: cálidas, aladas,
puríssimas, movendo-se numa cadência suave como quem tem tempo e
vive sem pressa. Todos os outros aspetos da sua figura são de uma
forma pouco lapidada. Foi engordando com o tempo, o cabelo em
desalinho foi-se extinguindo e as roupas usa-as sem critérios e em
camadas simplesmente para o protegerem do frio e assim poder estar
confortável a assistir ao espectáculo fervilhante do universo. Os
olhos irrompem diversas vezes em cintilações livres, libertando-se
dos espartilhos da idade em lampejos de frescura e jovialidade.
Talvez
por se ter tornado tão translúcido e introspectivo não ganhou um
realce particular na sociedade apesar da sua inteligência acima da
média. Nunca teve amigos aos molhos, mesmo sendo marcado por uma
natureza prestável e calorosa. É também por este mesmo motivo que
não há grandes histórias a contar sobre este personagem. As
transformações que ocorriam a nível interior mostravam-se nos
detalhes, nos passos que dava na linha reta à beira do Tejo. Sempre
o conhecemos com Lyra, a mulher que o acompanha deste tenra idade e
por quem se apaixonara por os seus olhos lhe parecerem música. Antes
de Lyra sonhava com Kety, uma boneca antiga com uma espessa
cabeleira, arrumada no baú do sótão, a quem nunca trocaram de
vestido − o que até lhe conferia encanto − nem reagia
entusiasticamente ao sorriso dele, mas que apesar da antiguidade ele
renovava com viva imaginação. Com ela aprendeu a ver o amor humano
como um fenómeno de projeção individual que nem sempre se molda ao
nosso gesto nem acompanha a nossa velocidade. Lyra, ao contrário de
Kety, é uma mulher de verdade. Daquele tipo de mulheres tão
entrançadas na vida de um homem que mal a conseguimos ver na sua
forma singular. Beleza simples, gestos discretos e naturais, inteligência discreta. Embora
percorressem durante diversos anos o mesmo caminho nas margens do
rio, a forma como estas duas figuras se foram posicionando no espaço
sofreu alterações até desaparecerem de vista. Quando ainda
transpiravam juventude, pedalavam de sorriso grande pois todos os
fins de semana a família era festa e havia bolo quente em casa da
mãe. Ela na sua bicicleta cor-de-rosa, os calções curtíssimos a
destacar a figura esbelta e bem recortada e ele numa bicicleta azul
com autocolantes de golfinhos e morcegos com óculos de sol, o ténis
a abrir no lugar do polegar, como que a extravasar os limites e a
contestar a vida material.
Passados
alguns anos,
o sorriso ficou menos efusivo e as bicicletas saíam com menos
frequência até se perderam de vista
ficando o Tejo e as coisas grandes e abrangentes como a luz que
brilha e se desvanece, a planura onde outros personagens talvez mais
coloridos agora desfilam. Creio que a ausência neste lugar se prende
com o facto de Lúcio ter atingido um grau de transparência tal que
começou a sentir dificuldade em se ver ao espelho, deixando também
de se ver refletido no rio, nas montanhas, nas pedras, assim como de
obter as respostas que daí advinham. Entretanto também engordou
demasiado, mas creio que neste caso o acréscimo de peso deste homem
não foi uma obesidade qualquer mas antes sinónimo de expansão e
abertura ao infinito. Quando a noite caía, a sua barriga refletia a
abóbada celeste e no rosto tinha o pasmo do filósofo das origens
ainda cheio de assombro, antes das questões emergentes, antes do
discurso, dos sistemas e das correlações. Podemos mesmo dizer que
esta foi a forma original de Lúcio amadurecer. Com isto, o tempo
venceu a identidade. Este processo interior de Lúcio fez com que
Lyra no início se sentisse confusa, um tanto perdida e desprotegida,
mas aos poucos a recetividade nela também se fez notar. Quando o
beijava os beijos sabiam-lhe a sal e maresia. Ao percorrer-lhe o
corpo tinha a sensação de se estar a erguer ao alto cume das
montanhas ou a ser puxada pela força avassaladora das cascatas.
Quando deixou de sentir medo começou a experienciar um prazer sem
limites, diferente de tudo que conhecera até então. E foi aí que
teve uma das melhores experiências da sua vida, como se se sentisse
una e múltipla como e com o universo. Ao tomar consciência de que
tinha tanto e era tão afortunada, começou a convidar as suas amigas
para partilharem com ela a mesma experiência excitante, avassaladora
e desafiante. Tornou-se especialista num vinho quente com especiarias
que brindava aos convidados e foi assim que a casa de Lúcio e de
Lyra se tornou uma casa aberta ao mundo. Este foi o segundo grande
ciclo das suas vidas, em que mais uma vez as paredes derrubaram
desafiando ao limite o sentido de “proteção”, “aconchego” e
“identidade”. Só que, neste caso concreto, não houve tragédia
mas as naturais dores de um alongamento. As mulheres que passaram a
frequentar a sua casa descalçavam-se à entrada, soltavam os
cabelos, despiam-se muitas vezes e, de alguma forma reforçadas por
aquele vinho, entravam em transe dando-se a uma infinidade de
expressões numa dança pautada pelo compasso da natureza. Neste ponto podíamos talvez dizer mais coisas
acerca destas mulheres do que do nosso personagem principal. Ainda
mais quando o efeito do vinho se extinguia. Ao perder o estado de
êxtase, a embriaguez, podíamos observar a tendência de cada uma
delas para se apoderar de uma parte, de privatizar zonas, lutar pela
parte que mais lhe convinha, destacar-se, mesmo estando tudo tão nu
e aberto. Mas sobre Lúcio termina neste ponto o fio da história ou
a total possibilidade para a mesma, visto que o luar, a alvorada, o
mar, não têm história. São sempre cenário, ambiência, clima,
por vezes metáforas e analogias que ilustram propósitos individuais
ou coletivos. Apenas as figuras perecíveis que se erguem entre o céu
e a terra no pano de fundo da natureza têm uma história ou são
personagens de histórias com um início, um enredo e um fim.
Verónica Louise
Verónica Louise
Oceano e a Mulher Sonho
Na
infância passava horas à janela que se abria para o horizonte e ao
entardecer, nos dias quentes e longos, a bola de fogo parecia estar à
distância de uma correria para a poder alcançar e fazer rebolar por
aí. Quando o verão perdia afirmação, as nuvens que se formavam no
céu ao tocarem a imaginação fértil de Oceano ajudavam a erguer um
mundo feito de personagens e enredos inventados. O tempo e os modos
foram esculpindo alterações na figura do rapaz que tinha o tom de
pele do lusco-fusco. Do homem em que se tornou permanece o brilho nos
olhos, os lábios agora mais plenos a puxarem o beijo e o gosto de
olhar pela janela como o ecrã cénico dos sonhos. O cenário mudara
desde que casara com Mariama – uma mulher mestiça como ele, com o
tom de pele mais claro e traços de rosto finos a contrastar com a
cabeleira negra em carapinha, e um corpo sólido, com ancas
acentuadas a tenderem para uma ondulação ligeira. O horizonte
deixou de se mostrar nu e aberto; prédios cheios de janelas
erguiam-se à sua frente formando uma textura urbana. Agora Oceano,
em vez de inventar estórias com a matéria gasosa das nuvens,
parecia ver um rosto em cada janela e, por vezes, ficava com a nítida
impressão de que esses rostos o olhavam também. Há uma hora para
tudo, a hora do tráfego e a hora dos espetáculos e dos filmes. A
noite tudo silencia e esbate as linhas que separam e dividem.
Intimista e discreta nas suas manifestações, anda em pés de veludo
e escapa das expressões cruas que o dia denuncia. Com ela andam os
sonhos e também os pesadelos e a luz do luar junta mais do que
divide, mas nisso também confunde. Quando o dia acorda, os sonhos
adormecem ou deixam de ser vistos e os atores esfumam-se, não
deixando nem rasto atrás de si. Creio que o nosso personagem passou
a perceber bem isto.
Das
muitas janelas e vidas houve uma que prendeu particularmente a
atenção de Oceano, ao ponto de o levar quase à obsessão , ao
delírio. À hora em que se apagavam as luzes e os olhos se fechavam,
ainda assim havia uma janela que permanecia com luz pela noite
dentro. Através da mesma entrevia-se uma estranha mulher. Parecia
manusear sabiamente a sombra e claridade e, ocultando-se, revelava-se
e movia-se em fios de luz que a desenhavam esbelta, ondulante,
serpentina…
Tudo
começou numa noite em que o mundo já dormia e apenas aquela janela
se mantinha iluminada. Um vulto feminino, uma luz difusa e um pedaço
de cortinado vermelho preso num dos lados captaram logo a atenção
do rapaz que deixara progressivamente todo o pudor e timidez e
começara a olhar com frontalidade e vivo entusiasmo. E se tudo teve
início com o vapor de uma chávena de chá movida por entre mãos
delicadas numa espécie de contra-luz que dava recorte à figura −
um ombro descoberto e cabelos longos, negros, a cair em cachoeira −,
aos poucos a tendência foi-se intensificando tornando-se num
espetáculo estonteante que logo se transformou num private
show que incluía a nudez mais ou menos explícita e a dança
envolvida num erotismo subtil e ousado. Esta sensação de viva
irrealidade foi o suficiente para dar uma reviravolta na cabeça de
Oceano. Não sei se as bailarinas são mesmo mulheres. Num certo
sentido, parecem de outra espécie; mas, na verdade, aquela figura
que com engenho, arte, ousadia e destreza deslizava à frente dos
seus olhos no abismo da distância dava a sensação de habitar por
momentos outra faixa da vida. E se no início havia o vivo entusiasmo
de um espetador a observar um espetáculo digno de apreço, ainda que
excitante, a partir de uma determinada altura este homem nada mais
queria que ultrapassar a barreira da distância e do desconhecido e
possuí-la nua, toda, plena e profundamente. Oceano deixou de
aguentar a provocação, não queria mais o jogo, não nascera para
viver amores platónicos. Gostava de aprofundar a experiência e para
ele isso significava um ato físico de efeito semelhante à sensação
concreta de alguém que engole muita água e se afoga. Não a ter
assim deixava-o frustrado, embora tivesse presentes as experiências
dececionantes que recorrentemente lhe sucediam com as mulheres, que
nem sempre são o que aparentam.
Por
outro lado, Mariama andava adoentada. Uma doença rara que nem se
percebia. Desfalecia mal o sol se extinguia, como um fantoche
desativado. Adormecia num sono profundo e nada a fazia acordar. No
seu sono era bela mas nem mesmo o beijo do marido a despertava.
Ninguém percebia ao certo o que lhe estava a suceder, nem mesmo os
médicos, embora fosse aconselhada a diversos programas de
psicoterapia. Quando a luz era intensa, Mariama andava radiosa com o
seu sorriso grande, um dos seus maiores dons mas também o seu
esconderijo. Esta mulher sorria quando estava feliz; e quando estava
triste também sorria. Dava-se ao mundo num sorriso e através do
mesmo se fechava. Só um olhar perspicaz e atento poderia perceber as
subtilezas e contradições do seu sorriso. Nos últimos tempos era
assim: ou se vestia de sorriso ou de bela adormecida. Apenas dois
modos. O desencontro devido a horários desiguais e o sono que dela
se apoderava à hora em que poderiam estar juntos fez com que a
relação perdesse dinâmica e fôlego. Apenas se encontravam nos
finais de semana, embora partilhassem o mesmo teto e a mesma cama o
resto da semana. Nesses dias, faziam amor mas já nada era como antes
e Oceano, quando estava com ela, era trespassado por imagens bruscas
da estranha mulher que aparecia à janela. Aos poucos foi passando a
vê-la como uma boneca em cima de uma cama que com ele dormia sem
reação nem iniciativa.
Durante
o dia não havia vestígios da bailarina e nunca se via ninguém à
janela. Dela, a vizinhança tinha apenas a imagem de uma estrangeira
de uma beleza vaga e fugaz que passava num rasto aqui e ali sem se
deter, como uma fagulha de fogo ou um clarão. Decidido a encontrá-la
como pessoa real de carne e osso, depois de muitas horas de espera,
houve um dia, já noite longa, em que a viu sair de casa. Envergava
um casaco preto comprido e no jeito de caminhar parecia um felino.
Mal sentiu que a estavam a seguir, acelerou o passo. O silêncio de
fundo das ruas que se bifurcavam dava recorte ao som. Ele agarrou-a
num braço, com convicção e ordenou-lhe, fitando-a nos olhos que
quase cegavam: «Não fujas». Ela obedeceu, parecendo que se tornara
líquida. O olhar de ambos tinha uma cintilação intensa . Quando a
olhou nos lábios, teve a impressão do vermelho que jamais tivera
antes, como se algo comunicasse com ele de forma avassaladora e ambos
partilhavam uma postura cúmplice . Beijaram-se ainda levemente, como
num prelúdio. Ali, colado ao corpo dela, fervilhante, estava prestes
a desvelar o mistério. E ela, dentro daquele casaco, estava vestida
como uma cortesã ainda que em traços sóbrios e notas de vermelho
sobre predomínio do preto, o que o que a tornava ainda mais
apetecível aos olhos deste homem que parecia estar a um passo da
realização do seu sonho. Respiração próxima, lábios com lábios,
corpo a corpo e a total nudez iminente. Um botão atrás de outro que
se desaperta, uma pequena fita que com facilidade de desata, a
brancura do seu corpo a aparecer cada vez mais em contraste com o tom
mais escuro da pele que a envolvia. Apenas o rosto e o corpo falavam
e nela nada era demasiado vulgar. Estava ali inteira, cheia de vida,
com a respiração da chama. Mas foi nesta série de movimentos e
acentuações iniciais que visavam ascender aos cumes que, de súbito,
a mulher se esfuma, se extingue; a figura de carne e osso desaparece
e os braços de Oceano abraçavam os seus próprios braços. No seu
lugar caem pétalas de rosa da cor dos lábios e dos cortinados… e
um perfume indescritível invadiu a rua. Fez-se sentir um bater de
asas… Oceano ficou confuso, mas ainda cheio de vida. Nada de
semelhante lhe tinha sucedido antes com uma mulher.
Chegou
a casa como um bêbado que vê a vida na transversal e tudo confunde
com tudo. Para sua surpresa, Mariama não se encontrava em casa e a
imagem habitual daquele quarto mudara. A marca do seu corpo nos
lençóis, causara-lhe nostalgia e, sem já nada perceber, acabou por
adormecer vestido no lugar onde ficara o rasto leve.
No
dia seguinte, Mariama quis ter uma conversa “séria” com ele.
Verificou, perplexo, a sua expressão mais aberta e determinada e sem
vestígios de sonolência. Estava, no entanto, de certa forma,
nervosa quando lhe pediu o divórcio. Disse ter encontrado outro
amor, um homem que percebera em profundidade todas as nuances do seu
sorriso, capaz de beijos de príncipe que a arrancavam do sono
pesado. Nesse dia discutiram e o diálogo tornara-se uma oportunidade
de acusações mútuas. Também ele a acusou de falta de iniciativa
para o surpreender, de sempre ter desvirtuado a dança, do seu
marcado desagrado pelo vermelho e persistência nos tons pastel,
mesmo sabendo que isso o excitava, entre outras coisas.
Por
vezes, depois do furor, fica a desolação de um fogo extinto. Foi
isso que Oceano sentira. Divorciou-se de Mariama e as luzes da outra
casa permaneceram fechadas. Nem o mais remoto vestígio da bailarina,
mas a saudade invadia-o frequentemente. Por outro lado, Mariama
abria-se para a vida como uma adolescente e teve mesmo uma
inexplicável vontade de usar um verniz vermelho. Mas o seu novo
namorado achava o tom demasiado vulgar; nunca gostara de lábios
lambuzados nem vernizes . Ainda mais a mulher que fosse dele…
Jamais gostaria de a ver com modos de vestir insinuantes e ares que
fizessem lembrar as putas. Apreciava nas mulheres o rosto lavado e
com o brilho inteligência.
Oceano
esqueceu Mariama com facilidade e passou a andar com muitas mulheres
que seduzia com elogios, surpresas e promessas de amor eterno; mas em
todas elas procurava a mulher que se desvanecera numa noite de
mistérios. E se Lusana o impressionou com um vestido vermelho justo
e decotado, Vera não lhe ficava atrás, com um batom de um vermelho
pouco berrante em lábios sedutores e um vestido preto que a faziam
ainda mais sexy. Lygia, então, com aquele corpo escultural e
os lábios ainda mais bonitos, um verniz vermelho a aparecer nos pés
delicados e um decote arejado de onde uma renda irrompia a acompanhar
a vida que explodia, concorria com vantagem com as anteriores e
impelia-o a fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para a
conquistar. Recorria a todas as técnicas e artimanhas para
conquistar todas as mulheres cujo tom e perfume se aproximavam
daquela memória e a conquista tornara-se uma das motivações da sua
vida. Mas, depois de as levar a vias de facto, perdia o entusiasmo
para relações sérias e inspiração para tantas surpresas e
elogios. Não conseguia evitar sentir-se um tanto desencantado, como
se o tom desvanecesse e o efeito quase heróico em simultâneo se
extinguisse. E foi assim, depois de contínuas experiências
contrárias à sua elevada expetativa e após ter-se apercebido de
quanto fazia sofrer as mulheres a
reclamarem
o regresso, a exclusividade, a manutenção do amor , assim como
esperavam o cumprimento das promessas , que aos poucos Oceano foi
perdendo a obsessão pelo vermelho e passara a experimentar uma
abertura e libertação no azul. Procurava o horizonte aberto longe
do reboliço das cidades e da vida fragmentada. Saía frequentemente
para praias desertas, onde se estendia de peito aberto a contemplar o
céu livre e iluminado, sem nuvens, sem bruma, sem figuras de
entretenimento onde o mar, as montanhas e as pedras eram uma presença
incansável. Nisto começara a sentir uma estranha liberdade e uma
felicidade sem suporte nem justificação…
A
bailarina, essa não era bem uma mulher, talvez por isso não
chegasse a perder a intensidade nem as ilusões. Dançava nos
intervalos da vida por entre as portas entreabertas, equilibrava-se
em fios finíssimos de luz e brincava com miragens e reflexos
dando-se sempre a números novos. Aguentava pouco tempo a
manifestação e a normalidade. Numas das suas últimas aventuras
jantara com um homem como uma mulher de verdade, embora em tudo se
parecesse com uma mulher de sonho: lindíssima, sensual,
resplandecente e sem idade. Mas extinguira-se em miríades de bolhas
no vinho adamado com que brindavam à vida num momento quente, quando
o seu decote se abria atrevido, acompanhado de um sorriso que dizia o
gozo que dava aquele roçar de pernas debaixo da mesa, com um pé que
se libertara da sandália, para entrar no mesmo momento nos sonhos de
Oceano, que a reconheceu como uma miragem, bruma, algo de irreal com
pouca importância, sem porém deixar de apreciar a sua beleza, a
perfeição das formas e a cadência dos gestos. E mesmo cheio de
vastidão, de azul e a satisfação que lhe dava essa nova vida sem
janelas nem portas, ainda assim, um lado de si parecia aspirar
aprofundar mais a experiência com aquela figura que sempre brincara
nos seus sonhos mas que nunca percebera ao certo onde era a sua
verdadeira morada.
M.
1.
No momento em que o violino intercetou a melodia acústica de uma Morna – cantada com toda a alma na voz de uma mulher de idade madura, a quem o tempo dera tempero à voz e espessura ao porte –, os olhos de M. invadiram-se de lágrimas. Elevou as mãos à cabeça e afogou-se ainda mais na boina com uma pequena pala que fazia alguma sombra no rosto, sem, ainda assim, conseguir esconder completamente esse excesso que não gostaria de exibir tão cruamente aos olhos do mundo: « Um homem não chora!». E ali ficou um tanto discreto, na cor suave com que a terra lhe pintara a pele, por entre uma pequena multidão a assistir ao espetáculo. Aparente tranquilidade ameaçada por um turbilhão interior a desfazer o equilíbrio formal da figura. Homem de poucas palavras, de escassos sorrisos, quando rasgava o silêncio era para cantar; quando quebrava a imobilidade era para dançar,correr, amar. Sempre pronto a travar uma batalha, fazer justiça (e injustiças),defender os amigos ou simplesmente por uma qualquer necessidade de se expressar porque a sua paisagem era um campo vasto e no braço sólido, apesar de magro, trazia tatuado um centauro: metade homem, metade cavalo. Portanto, M. tinha momentos em que precisava de palcos, de aplausos, de luzes incidentes, de gerar calor, de intensificar a vida. Fora esses momentos – os “ grandes momentos” –,fechava o rosto, economizava palavras, engolia as lágrimas, fermentava a vida e naquela noite – embalado na melodia que reforçava ainda mais a imagem memória de Clarisse – desabava por dentro, tornava-se secretamente frágil e a vida nele tinha o modo doce e amargo daquela melodia.
2.
M. nunca mais foi visto no bar da Bia a desfiar cantigas. T. chegou a comentar por alto que passou um período em que mal comia e se entregara ao isolamento. A mulher que o observara naquela noite, com quem trocou algumas palavras sobre a música, a quem deu o número de telemóvel num papel manuscrito (por o ter chamado a atenção pela diferença) procurou-o dias depois com o olhar no mesmo local, mas sem sucesso (abandonou o papel numa gaveta pela própria erosão de sucessivos desencantos). Tomaria o comboio que o levaria a Paris – a cidade onde estivera há três anos integrado numa companhia de dança afrocontemporânea com bom desempenho. Com ele levou as coisas que não ocupam volume nem pesam: o dom da voz e do corpo, a figura como um apelativo cartão-de-visita e a semente amarrotada para o reinício. Trocou o computador portátil por umas botas de atacadores pouco acima dos tornozelos e um casaco folgado (cheio de botões e golas grandes a fazer lembrar os poetas românticos) com um estudante de filosofia. Só faltavam os focos de luz do cinema para o tornar uma figura de filme – apesar de já não tomar banho há três dias. E a boina.
3.
O movimento do comboio varria a paisagem e deixava Lisboa distante. A ideia de Clarisse ia adormecendo pela própria repercussão do movimento como um embalo dentro. A tarde deu origem à noite; a noite, ao desfazer-se, foi substituída pela manhã que entra pela janela do comboio em bicos de pés. M. volta a afogar o rosto na boina, agora para fingir a noite e prolongar o sono. O corpo em abandono dava o efeito de um boneco de trapos a perder consistência. Quando a manhã se impôs, começou por recompor a postura e aliviar o rosto. A luz de uma mulher bonita, jovem, que seguia agora no banco da frente (nos olhos bailavam-lhe reflexos de lume tímido e o conjunto misturava o equilíbrio do clássico com a originalidade assimétrica do contemporâneo) assaltou-o. Quando sentia que ele não a observava lançava-lhe um olhar breve, rasante, para voltar depois a focar a atenção no desfile corrido da paisagem. Quando o breve instante de ambos coincidiu o mundo estremeceu (só que ainda era segredo). M. tirou a boina, elevou as mãos à cabeça recompondo-se do sono e de um certo desconforto do corpo. Os lábios de tentação dela iluminados pelo sol eram o íman para os olhos dele. Um horizonte de motivação começou a adivinhar-se em silêncio.
(Mudar de mulher é como mudar de paisagem,mas o sol continua a nascer e a pôr-se em todas elas.)
Pedro
Pedro também ganhou um prémio: melhor aluno de engenharia informática!Mal acabara de ler o mail, já estava em cima da cadeira com os braços aberto a uivar como um campeão:« SIIIIIIIIIIIMMMMMMMMMMM».Encontrava-se sozinho em casa quando recebeu a notícia, mas rapidamente assumiu uma identidade de dia de festa e tomou a distinção de um sol. O mundo estava agora ali, a seus pés.(Subitamente, o silêncio da casa ganhou dimensão). Olhou a fotografia pendurada na parede. Ele no meio dos pais. Três sorrisos que mais pareciam um só. Baixou os braços. As lágrimas planaram nos olhos. O sorriso amadureceu. Será que ainda o poderão ver e ouvir? E que orgulho! Que orgulho! Voltou a sentar-se. Recolheu a loucura para dentro de casa. Releu com mais atenção o mail. Quando se aproximou dos olhos esmagadores desse mundo pregados nele, escondeu o rosto por entre as mãos. Bastava ter de dar uma aula para estremecer. O que iria dizer? Quem não poderia esquecer? Afinal: que interesse é que um prémio tem? O que significa tudo isto à escala global? Vendo bem, sentia um certo conforto na insignificância de grão de areia no deserto enamorado do luar e do amanhecer , mais do que nesta alucinação narcísica com densidade real.
E o dia chegou. Levou Lídia, como não podia deixar de ser, pela mão; convidou as irmãs e os cunhados, o Dany e a Carla . Para sua surpresa, não subiu ao palco nem o esperavam uma multidão . Recebeu o prémio com uma alegria natural . Ainda assim, a sua irmã Carminha chorou de comoção . Uma parte era ela, outra - a expressão que emprestara à Mãe.
Alice
1.
Alice sempre demonstrou uma admirável aptidão para estruturar a vida: separá-la por cores, diferenciá-la por temas; traçar e cortar linhas precisas. Intervinha apenas no momento oportuno; dava aos modos um lustro distinto. Até que uma corrente intempestiva, imprevista, lhe puxa violentamente o tapete,derruba os planos,faz explodir os limites.
2.
«A operação correu bem»(respira-se de alivio; iluminaram-se as lágrimas, os detalhes ganharam um valor imenso).
3.
Alice ergueu-se a custo.Olhou olhos nos olhos o sinistro e, ainda dorida,retomou o seu posto de fortaleza: ser mãe-incondicionalmente.
- Verónica Louise
Silvana
Meninas crescidas #1
Aos 57 anos Silvana renasceu. Ao último toque da manhã fechou o livro num discreto gesto decidido e fez deslizar um olhar terno e desprendido pelos seus alunos do 4.º ano, que aos poucos iam abandonando a sala de aula. A professora parecia conhecer-lhes a alma de cor e deliciava-se com os detalhes de cada um. Mas nada disto a faria deter. Avistavam-se novos horizontes. Ainda havia a casa para pagar – está certo - e a sorte a conquistar. Nesse dia Silvana resolveu comprar um chapéu preto (convenhamos: dava-lhe um certo glamour) e foi à casa de banho do restaurante passar batom nos lábios delicados - ela que raramente usa batom! Pressionou-os para logo os soltar, dando-lhes deste modo um reforço acrescido, e realçou o mar dos olhos. Trata as linhas da vida traçadas na pele com respeito e cordialidade. Achou-se bem. Voltaria a ter mais tempo para ler e escrever, até já sentia o fervilhar de um romance. Passaria a saber dizer “não” e a responder mais tarde aos emails. E foi nesse mesmo dia de tomadas de decisões -quando ao final da tarde folheava um livro de poesia numa livraria da baixa - que, ao levantar os olhos do livro, se apaixonou. Nela a paixão nunca foi gradual. Era qualquer coisa como um reconhecimento súbito e arrebatador. Não sabia se aquela febre seria coisa de dias, anos, meses ou eternidade, mas aceitou o convite para jantar, uma ida ao cinema, um passeio à vila de Sintra...Depois beijou: com o fulgor da primeira vida.
- Verónica Louise
Albino
Albino
é um homem com uma sensibilidade peculiar. Apercebeu-se há tempos,num casual
reflexo do seu rosto, do arrefecimento do sol. Na sua
postura aberta, na facilidade com que trinca conversas,vinga uma
natureza generosa e adaptável. Albino não procura o sentido da vida
“além das estrelas” nem se inclina demasiadamente para as
“arestas afiadas da vida”. A sua órbita de ação
insere-se neste espaço de diversidades. Apesar da morte que
espreitar nos olhos de todas as coisas, ainda se assemelha a um
parque de diversões cheio de contrastes, oscilações e o perpétuo
baloiçar entre o “sim” e o “não” que reforçam a emoção e
sensação de se estar vivo. A comunicação, para ele, é semelhante
a um jogo da bola. É capaz de estar um longo período de tempo nesta
atividade de agarrar e passar a bola que vai andando de mão em mão.
Na verdade, Albino tem os bolsos cheios de coisas giras e de lugares
por explorar assinalados no mapa. Ganhariam ainda mais sentido quando
partilhados com a pessoa amada ou uma família. Engenhoso e de uma
curiosidade aguçada,mal repara na gama tonal de um tom. Procura
acentuar os contrastes, percorre dinamicamente todas as cores do
arco-íris e até lamenta não haver mais cores para variar.
Este
homem sempre teve fascínio por comboios e maquinarias. Um dia pôs
mãos à obra e construiu uma linha férrea em miniatura na sala −
mesmo junto ao teto − com diversas carruagens, túneis, linhas que
se cruzam, iluminação noturna e som a valer. Tudo comandado à
distância. Finalizou a obra e ficou satisfeito. Imaginou o olhar
radioso de uma criança num rosto que se abre num sorriso fácil com
estas coisas que rolam, buzinam e acendem as luzes. Mas com o tempo
os comboios começaram a ganhar demasiado pó e a enferrujar, pois
foram deixando de ser novidade para ele por falta de os mostrar como
novidade a alguém.
Num
outro dia, acordou entusiasmado com a ideia de fazer uma festa em
casa. Mesmo antes de enviar os convites, começou a preparar um
jantar com os melhores vinhos e as mais finas iguarias. Esmerou-se na
composição das mesas e optou por um tipo de iluminação difusa e
aveludada que facilitasse a união e o romantismo. Barbeou-se e
vestiu uma roupa nova sem descurar o sentido prático que lhe é
característico. Fez a cama de lavado, selecionou cuidadosamente as
músicas e até imaginou coreografias fáceis de salsa para animar os
amigos. E viu uma mulher sobressair naquela noite: de olhos cor de
mel e pele leitosa a trespassá-lo com um olhar sinuoso e
simultaneamente desviante num subtil jogo de agarrar e largar e
aqueles movimentos demorados mas esquivos que fomentam uma espécie
de sede e uma euforia secreta. No fundo, pensava para si mesmo que
não era demasiado exigente para com a vida. Vendo bem o que
procurava era uma mulher humana, real: uma senhora, uma companheira.
Não precisava ser um estereótipo de beleza exata nem ter a técnica
afiada de uma cortesã −apesar de todas essas coisas naturalmente o
entusiasmarem (muito mais do que acreditava até a um dado momento).
Mas esta mulher não apareceu naquela noite. Aliás, ninguém
apareceu porque foram convidados à última hora e já tinham
compromissos. Albino acabou por adormecer no sofá com o televisor
ligado e os candeeiros acesos até ao romper do dia. Andou mais de
uma semana a comer os restos da festa que não houve. Partilhou com
os colegas de trabalho e levou bolo de chocolate à rececionista de
pele escura que lhe devolveu um sorriso grande de batom vermelho
(pena aquele género não o entusiasmar grandemente!)
Albino
vive agora com o Petit, um periquito azul que anda às voltas na
casa, voa para cima da cabeça e dos ombros dele, rouba-lhe os
fios de esparguete às refeições e anda de um lado para o outro à
frente do televisor quando o vê demasiado concentrado nos filmes.
Dá-lhe beijos nos lábios quando este lhe ajusta a boca em jeito de
assobio, de forma a moldar-se ao seu bico − o que daria,
certamente, uma selfy largamente apreciada nas redes
sociais. Vive também com Nancy, a cadela branca um pouco felpuda que
encontrou abandonada à borda da estrada num mês de agosto e que dá
voltas de contente quando ao final da tarde sente o rolar da
fechadura. Para além destes dois amigos, temos ainda os matizados
peixes cheios de reflexos luminosos a viver num aquário − o que
encontrou mais semelhante ao oceano. Apesar desta vida que o
circunda, quando ao fim de um dia de trabalho entra em casa, sente
que alguma coisa falta. Uma presença mais humana, talvez, com quem
pudesse partilhar o pão, o sorriso e as lágrimas; que emitisse
palavras e sorrisos e chorasse da mesma maneira que ele. A solidão
poderia ter-lhe dado uma maior sensibilidade para apreciar os
detalhes da vida mas esta caraterística não encontra nele um
terreno fértil. Andar em frente e dar saltos para cima, preencher
todos os espaços em branco, isso, sim, é para ele tão
natural como para o homem civilizado tomar banho todos os dias.
Enquanto espera que a vida lhe traga os seus anseios, ao final da
tarde, nos dias de semana, lá está ele no jogo da bola que é o
facebook onde já tem 2373 amigos e muitos, muitos gestos
de atenção e apreço − o que em parte já serve de consolo.
Por vezes, isto origina um vazio ainda maior pois não faz correr,
transpirar e nem desenvolve os músculos. Mas Albino continua com
os bolsos cheios de coisas giras: o goso pela comunicação, o
engenho, uma certa capacidade de responder de forma imediata à vida
e nela improvisar respostas sempre novas. Características que fariam
dele, certamente, um pai brilhante e um marido fascinante. Algumas
destas competências partilha-as alegremente com os amigos e amigas;
outras necessitariam talvez de um tipo de iluminação e um ambiente
mais intimista para se revelarem plenamente. Estas últimas continuam
guardadas para a pessoa “especial” que, à semelhança do
rei Sebastião, permanece oculta na bruma à espera do dia em que uma
luz mais incidente a revele.
-Verónica Louise
Cadete
Cadete chegou exausto a casa, descalçou os sapatos e aterrou pesadamente em cima do sofá. Quando Mila regressa, diz-lhe estar com uma terrível dor de cabeça. Fechou os olhos. Mal a olhara. Dentro dele fazia-se um curto circuito de emoções amargas e idealismo em retrospetiva. Cadete desde há muito tempo que tem fantasias sexuais com francesas. Numa gaveta do imaginário ainda guarda uma ruiva com franja e lábios cor de framboesa que lhe sussurrava ao ouvido "Je t'aime". Dizia depois outras palavras que só entendia pela entoação sonora, o que bastava para se sentir pujante, imenso. E tinha muitas outras fantasias com mulheres daquele género. Transar nas escadas de uma casa abandonada- encostá-las ao corrimão e penetrá-las por trás; no capot de um Land Rover todo-o-terreno no pico da montanha, rasgar-lhe o decote na esquina de uma rua de calçada de granito, assistir a uma cena escaldante entre amigas... E foi ao percorrer o caminho de Santiago, de bicicleta com mais dois amigos, que conheceu uma francesa. Não era loura, era morena. Andava de calções e de botas de montanha mas pareceu-lhe atraente. Trocaram olhares fulminante, sorrisos que se transcendiam e a voz dela era sensual, expressiva. Continuaram depois com sms e conversas no chat do facebook misturando palavras inglesas e francesas. Três semanas depois a rapariga aterra em Lisboa numa espécie de urgência. Alugara um quarto de hotel para tão ansiado encontro. Mas por mais estranho que pareça Cadete não se veio. Talvez tivesse sido do hotel, afinal tão limpo, plano, directo; com luz em demasia a entrar pelas janelas e a certeza sem margem de risco. Discutiram e não se entenderam. Ele acabou por sair do quarto deixando a rapariga entregue a ela mesma numa cidade desconhecida.
Mila constatou que o marido estava mesmo a dormir e não o quis acordar. Ligou a televisão e assistiu a mais um capitulo da telenovela. Tinha que esperar que ele abrisse os olhos para lhe mostrara o novo corte de cabelo.
- Verónica Louise
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