Álbum de Retratos

Invento-vos como sois (Bergson), mas o essencial de vós escapa aos enquadramentos.


(Imagem : Adama)

Albino

Albino é um homem com uma sensibilidade peculiar. Apercebeu-se há tempos,num casual reflexo do seu rosto, do arrefecimento do sol. Na sua postura aberta, na facilidade com que trinca conversas,vinga uma natureza generosa e adaptável. Albino não procura o sentido da vida “além das estrelas” nem se inclina demasiadamente para as “arestas afiadas da vida”.  A sua órbita de ação insere-se neste espaço de diversidades. Apesar da morte que espreitar nos olhos de todas as coisas, ainda se assemelha a um parque de diversões cheio de contrastes, oscilações e o perpétuo baloiçar entre o “sim” e o “não” que reforçam a emoção e sensação de se estar vivo. A comunicação, para ele, é semelhante a um jogo da bola. É capaz de estar um longo período de tempo nesta atividade de agarrar e passar a bola que vai andando de mão em mão. Na verdade, Albino tem os bolsos cheios de coisas giras e de lugares por explorar assinalados no mapa. Ganhariam ainda mais sentido quando partilhados com a pessoa amada ou uma família. Engenhoso e de uma curiosidade aguçada,mal repara na gama tonal de um tom. Procura acentuar os contrastes, percorre dinamicamente todas as cores do arco-íris e até lamenta não haver mais cores para variar.

Este homem sempre teve fascínio por comboios e maquinarias. Um dia pôs mãos à obra e construiu uma linha férrea em miniatura na sala − mesmo junto ao teto − com diversas carruagens, túneis, linhas que se cruzam, iluminação noturna e som a valer. Tudo comandado à distância. Finalizou a obra e ficou satisfeito. Imaginou o olhar radioso de uma criança num rosto que se abre num sorriso fácil com estas coisas que rolam, buzinam e acendem as luzes. Mas com o tempo os comboios começaram a ganhar demasiado pó e a enferrujar, pois foram deixando de ser novidade para ele por falta de os mostrar como novidade a alguém.



Num outro dia, acordou entusiasmado com a ideia de fazer uma festa em casa. Mesmo antes de enviar os convites, começou a preparar um jantar com os melhores vinhos e as mais finas iguarias. Esmerou-se na composição das mesas e optou por um tipo de iluminação difusa e aveludada que facilitasse a união e o romantismo. Barbeou-se e vestiu uma roupa nova sem descurar o sentido prático que lhe é característico. Fez a cama de lavado, selecionou cuidadosamente as músicas e até imaginou coreografias fáceis de salsa para animar os amigos. E viu uma mulher sobressair naquela noite: de olhos cor de mel e pele leitosa a trespassá-lo com um olhar sinuoso e simultaneamente desviante num subtil jogo de agarrar e largar e aqueles movimentos demorados mas esquivos que fomentam uma espécie de sede e uma euforia secreta. No fundo, pensava para si mesmo que não era demasiado exigente para com a vida. Vendo bem o que procurava era uma mulher humana, real: uma senhora, uma companheira. Não precisava ser um estereótipo de beleza exata nem ter a técnica afiada de uma cortesã −apesar de todas essas coisas naturalmente o entusiasmarem (muito mais do que acreditava até a um dado momento). Mas esta mulher não apareceu naquela noite. Aliás, ninguém apareceu porque foram convidados à última hora e já tinham compromissos. Albino acabou por adormecer no sofá com o televisor ligado e os candeeiros acesos até ao romper do dia. Andou mais de uma semana a comer os restos da festa que não houve. Partilhou com os colegas de trabalho e levou bolo de chocolate à rececionista de pele escura que lhe devolveu um sorriso grande de batom vermelho (pena aquele género não o entusiasmar grandemente!)



Albino vive agora com o Petit, um periquito azul que anda às voltas na casa, voa para cima da  cabeça e dos ombros dele, rouba-lhe os fios de esparguete às refeições e anda de um lado para o outro à frente do televisor quando o vê demasiado concentrado nos filmes. Dá-lhe beijos nos lábios quando este lhe ajusta a boca em jeito de assobio, de forma a moldar-se ao seu bico − o que daria, certamente, uma selfy largamente apreciada nas redes sociais. Vive também com Nancy, a cadela branca um pouco felpuda que encontrou abandonada à borda da estrada num mês de agosto e que dá voltas de contente quando ao final da tarde sente o rolar da fechadura. Para além destes dois amigos, temos ainda os matizados peixes cheios de reflexos luminosos a viver num aquário − o que encontrou mais semelhante ao oceano. Apesar desta vida que o circunda, quando ao fim de um dia de trabalho entra em casa, sente que alguma coisa falta. Uma presença mais humana, talvez, com quem pudesse partilhar o pão, o sorriso e as lágrimas; que emitisse palavras e sorrisos e chorasse da mesma maneira que ele. A solidão poderia ter-lhe dado uma maior sensibilidade para apreciar os detalhes da vida mas esta caraterística não encontra nele um terreno fértil. Andar em frente e dar saltos para cima, preencher todos os espaços em branco, isso, sim,  é para ele  tão natural como para o homem civilizado tomar banho todos os dias. Enquanto espera que a vida lhe traga os seus anseios, ao final da tarde, nos dias de semana, lá está ele no jogo da bola que é o facebook onde  já tem  2373 amigos e muitos, muitos gestos de atenção e apreço − o que em  parte já serve de consolo. Por vezes, isto origina um vazio ainda maior pois não faz correr, transpirar e nem desenvolve os músculos. Mas Albino continua com  os bolsos cheios de coisas giras: o goso pela comunicação, o engenho, uma certa capacidade de responder de forma imediata à vida e nela improvisar respostas sempre novas. Características que fariam dele, certamente, um pai brilhante e um marido fascinante. Algumas destas competências partilha-as alegremente com os amigos e amigas; outras necessitariam talvez de um tipo de iluminação e um ambiente mais intimista para se revelarem plenamente. Estas últimas continuam guardadas para a pessoa “especial”  que, à semelhança do rei Sebastião, permanece oculta na bruma à espera do dia em que uma luz mais incidente a revele.



-Verónica Louise